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São Paulo, quinta-feira, 01 de maio de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Dona Baratinha

RIO DE JANEIRO - Ali por volta dos 50 anos, de repente se descobriu sozinho. Foi uma sensação boa, saber que não tinha ninguém a vigiar seus passos, a cheirar suas roupas, a patrulhar cada hora do seu dia. Na infância, a mãe se encarregava desse ofício policialesco disfarçado em amor maternal, "ser mãe é padecer num paraíso", pois sim.
Mais tarde, foi o colégio interno, inspetores fuçando os travesseiros e gavetas da mesa de estudo, procurando aquelas figurinhas. Depois o casamento, o primeiro e, logo, o segundo, mulheres tão diferentes, mas iguais na capacidade de encontrar um fio de cabelo suspeito na gola do paletó ou de verificar o canhoto dos talões de cheque para descobrir despesas do pecado.
Ficou sozinho, liberdade, abre as asas sobre mim. Passou uns dias em Nova York com uma colega de escritório, pescou no Pantanal com a filha da vizinha que ele cobiçava e, quando precisou penetrar no universo da informática, a moça veio em casa ensinar como enviar e receber e-mails, e tudo terminou num hotel da Sardenha, onde o mar era uma esmeralda macia na qual podiam mergulhar.
Mas um dia acordou e descobriu que estava fazendo 50 anos. Um escritor famoso, ao fazer a mesma idade, recusou-se a sair da cama para não ver no espelho a cara dos seus 50 anos.
Ele não era escritor nem famoso, mesmo assim ficou encolhido na cama, protegido pelos lençóis, pelas cortinas fechadas, o telefone desligado.
No dia seguinte, procurou esquecer que chegara aos 50 anos. Por acaso, passou por ele a moça de saia amarela. Via-a de costas, acompanhou-a até o primeiro cruzamento, onde o sinal fechara. Lembrou-se da história da Dona Baratinha, que foi para a janela e perguntava a todos que passavam: "Quer casar comigo?".
Não teve coragem. Na história que a mãe lhe contara, Dona Baratinha havia achado uma moeda de ouro e por isso queria casar-se. Ele não achara moeda nenhuma, apenas ficara mais velho.
O sinal abriu e a moça de saia amarela sumiu para sempre.


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