São Paulo, segunda-feira, 01 de julho de 2002

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O efeito da droga

WÁLTER MAIEROVITCH


Nota-se uma proliferação de drogas sintéticas, produzidas e consumidas a baixo custo nos países ricos


Nos últimos 40 anos, fracassaram sistematicamente as políticas e as estratégias tradicionais empregadas para contrastar a difusão das drogas proibidas.
A Convenção de Viena, de 1988, reafirmou a política e a estratégia de repressão total contra a produção e o tráfico de drogas. Proibiu e criminalizou o porte de drogas para consumo pessoal e preconizou a adoção de sanções mais rígidas aos consumidores.
Verifica-se, agora, continuar significativo o aumento da oferta e da demanda das drogas ilícitas. Nota-se, também, uma proliferação de drogas sintéticas, produzidas e consumidas a baixo custo nos países ricos.
Nesses anos passados, o mercado das drogas nunca apresentou sinais de crise, quer pela conjuntura econômica, quer por ações repressivas das polícias. A economia movimentada pelas drogas atraiu o interesse de elites políticas nos vários países produtores. Existem narco-Estados, países cúmplices e ditaduras militares de sustentação, como em Mianmar (ex-Birmânia). Além disso, aumentou a circulação do dinheiro sujo das drogas com o aproveitamento da tecnologia de ponta fornecida pelos sistemas bancários e financeiros, tanto nas zonas "on shore" (Miami, Viena etc.) como nos paraísos fiscais.
A geopolítica das drogas, muitas vezes, esconde interesses hegemônicos, estratégicos e econômicos, como, por exemplo, o sucedido no Afeganistão, na Colômbia, no Peru e no Paquistão.
Da Europa partiram as novas posturas para o enfrentamento do fenômeno das drogas e a própria Secretaria Geral da ONU já percebeu a falência da linha norte-americana da "War on Drugs" (Guerra às Drogas). Mas Bush mantém-se irredutível e traz de volta o discurso de Ronald Reagan. Aquele da guerra contra as drogas internacionais, apontando a produção e a oferta vindas do exterior como de responsabilidade dos inimigos da América.
Na sessão especial da Assembléia Geral de 1998, nem todos engoliram a máxima do "a drug free world - we can do it" (um mundo livre das drogas, podemos construí-lo). Muito menos o ufanismo contido no discurso inaugural de que a "War on Drugs" não estava perdida, simplesmente porque não havia sido iniciada.
O sinal de desaprovação deveu-se ao fato de a maioria dos Estados-membros haver vetado a "Strategy for Coca and Opium Poppy Elimination". Esta estratégia previa a eliminação, em dez anos (até 2008), do cultivo ilícito de coca e papoula existente no mundo. Para tanto, estabelecia a erradicação forçada -"manu militari"- e o desenvolvimento de cultivos alternativos na Colômbia, na Bolívia, no Peru, em Mianmar, no Laos, no Vietnã, no Afeganistão e no Paquistão.
Os norte-americanos, nesses anos todos, procuraram impedir o consumo das drogas com a criminalização e obrigatoriedade da abstinência. Posição que os Estados Unidos fazem pressão para introduzir no mundo todo.
Acreditaram na onipotência da lei da proibição para o fim de inibir o uso. Investiram no tratamento obrigatório, com abstinência de consumo durante o seu curso, como alternativa à pena de prisão para o réu primário. Inventaram, para isso, os Tribunais para Dependentes Químicos, para os quais o usuário será sempre um criminoso, na cadeia ou em tratamento.
Essa fórmula perversa é maquiada pelo falso slogan do "mais tratamento, menos cárcere". Foi adotada na Inglaterra, em 1990, no programa "Drug Treatment and Testing Order". Mas os ingleses perceberam o erro, pois o verdadeiro slogan seria "mais tratamento, sob a ameaça de cárcere".
A política sobre drogas ilícitas recentemente anunciada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso adotou o modelo norte-americano. Criminalizou o porte de droga para uso pessoal. Introduziu, usando um eufemismo, a Justiça Terapêutica no Brasil. Ou seja, obriga-se o criminoso ao tratamento, com abstinência e sem possibilidade de controle de danos e riscos: redução de doses, substituição de drogas pesadas por leves etc.
Entre nós, a criminalização está presente na lei em vigor e no artigo 20 do projeto de lei 6.108, há pouco encaminhado pelo governo federal ao Congresso Nacional.
Na política escolhida pelo presidente, o porte para uso pessoal é crime. A pena por esse tipo de crime pode ser o tratamento obrigatório. Assim, consagrou o presidente Fernando Henrique o caminho ironizado na Europa como sendo o da solidariedade autoritária.
A imaginada redenção pela Justiça Terapêutica elimina a possibilidade de adoção da prática sociossanitária européia, conhecida como redução de danos. E a redução de danos não implica abandono de uso, mas controle dos riscos.
Diversos países europeus têm uma abordagem mais pragmática e humana. Reconhecem consistir o uso de drogas em um fato social que não se consegue impedir. Daí a importância do controle dos danos e do abandono da criminalização e do tratamento coercitivo.
Portugal virou modelo. O porte de drogas para uso próprio é uma infração administrativa, ou seja, não criminal. Foram criadas 18 comissões civis, nas quais especialistas, fora da área criminal, orientam e informam o consumidor. No caso de reincidência, há um elenco de medidas que não diminuem nem afetam a dignidade do consumidor.
Talvez ainda haja tempo para o presidente anunciar mudança na sua política, que encerra a ideologia norte-americana da intolerância e estabeleceu uma solidariedade autoritária para com os consumidores.


Wálter Fanganiello Maierovitch, 55, juiz aposentado do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, é presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Giovanne Falcone. Foi secretário nacional antidrogas da Presidência da República (1999-2000).


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