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CLÓVIS ROSSI
O lixo e o lucro
SÃO PAULO - O governo brasileiro acaba de anunciar, com muito orgulho, que deu lucro no primeiro semestre. União, Estados e municípios arrecadaram R$ 30,4 bilhões a mais do
que gastaram (fora os juros).
O "lucro" conseguiu ser superior à
meta acertada com o FMI (Fundo
Monetário Internacional), que se
contentava com R$ 21,4 bilhões.
Até daria orgulho, não fosse a foto
da capa da Folha de ontem, mostrando o pessoal de favelas cariocas
fuçando o lixo no Ceasa, queimado
dez dias atrás, em busca de comida.
A repórter Fernanda da Escóssia
captou bem o momento na frase de
uma garota de 13 anos com que abriu
o seu texto: "Se eu comer essa salsicha, vai fazer mal? Eu já comi. Só não
queria mais ficar com fome".
Tem de haver algo profundamente
errado em um país cujo governo se
orgulha de ter "lucro" enquanto seus
habitantes buscam comida no lixo.
Não se trata de ser contra orçamentos equilibrados. Mas já é discutível,
em primeiro lugar, o tamanho do superávit que o Brasil combinou com o
FMI. Trata-se de um ajuste brutal.
Seria perfeitamente possível diluí-lo
no tempo.
Agora, aceitar ir além do aperto
combinado com o Fundo é de uma
insensibilidade inimaginável. Sou
obrigado a voltar a Paul Krugman, o
economista-estrela de Princeton, que,
na semana passada, condenava a
aplicação, em países como a Argentina, de receitas que seriam impensáveis nos EUA.
No Brasil, é ainda pior, porque a situação social brasileira consegue ser
pior que a da Argentina mesmo na
decadência. Aqui, é maior o número
de pessoas que comem salsicha eventualmente podre só porque não
aguentam mais ficar com fome. Enquanto isso, o governo dá "lucro".
Não pergunte, por favor, para quem
vai o "lucro".
Não é certamente para Ana Paula
Moreira Neves, a menina que trocou
a fome pelo lixo.
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