São Paulo, domingo, 01 de outubro de 2006

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Privatizando a opinião pública

EDUARDO PORTELLA


Estamos vivendo uma eleição sob todos os aspectos relevante, mas cuja agenda passou ao largo de uma democracia de opiniões


QUANTO MAIS aumenta o comércio informal da imagem ou da mensagem, partindo do princípio duvidoso de que são elas duas coisas diferentes, tanto mais diminui o espaço da saudável controvérsia democrática. Sem essa tribuna, sem esse dissídio, sem esse conflito mesmo, fica difícil reverter o quadro clínico, depauperado, carente, do desempenho verdadeiramente político.
Não que a política seja tudo. De modo nenhum. Mas, quando a economia passa a ser tudo, é indispensável infiltrá-la de sociabilidade, de cotidianidade. E, nesse instante, emergem, como depositários e garantia do trabalho político, a interlocução e a negociação. A primeira vem a ser pré-requisito da segunda. E, por sua vez, elimina o abismo que se interpõe entre a cultura do interlocutor e a aventura do locutor.
Estamos vivendo uma eleição sob todos os aspectos relevante, mas cuja agenda passou ao largo de uma democracia de opiniões. Ou de divergências complementares.
O locutor é um dedicado mercador de verdades hegemônicas e impositivas, sem interesse na coabitação respeitosa e, por isso mesmo, frutuosa.
Deixou-se igualmente de valorizar o recurso protagônico da negociação, da aptidão para a convivência.
Nesse momento, a animalidade humana se expõe à visitação pública, particularmente exitosa no horário eleitoral. Nessa hora, vale lembrar do narrador João Guimarães Rosa, cujo "Grande Sertão: Veredas" completa agora 50 anos de vida, que um dia anteviu a "terceira margem do rio".
É um lugar imune ao binarismo, onde não existem nem vencidos nem vencedores. Aí, as leituras enviesadas, ideologizadas, não raro ameaçadoras do nosso pluralismo, quando ganham corpo e perdem a alma. Alguns atores disputam papéis nesse teatro de sombras, ou apenas ingressos nesse declinante baile de máscaras.
Mas, porque a interlocução perdeu hora e vez, surgiu na nossa cena pública um megaator, investido de funções superiores. Ele, também conhecido como marqueteiro, sem dúvida um produtor de fantasias -ou de sonhos, pouco imaginosos, mas freqüentemente bem-sucedidos, sobretudo quando se trata de propaganda enganosa.
As aversões se convertem em simples e palatáveis versões. As ciclotimias das sondagens de opinião, apesar das flutuações do mercado ou da volatilidade eleitoral, prosseguem com o prestígio intocável, implementadas desinibidamente pelos fundos públicos, pelas seguradoras, pelas licitações ilícitas, pelas corporações, pela iniciativa privada, enfim.
Por que as interlocuções foram proscritas da mídia? Terá sido pela insuficiência intelectual ou pela banalização eufórica e progressiva? Muitos preferem atribuir à indisposição ética para o diálogo e ao autismo predominante nos nossos governantes. Em qualquer caso, vale prestar atenção na aliança perigosa de mídia eletrônica e religião. Os amores virtuais são bilhetes de loteria com altas taxas de risco.
A nação de opinião pública foi o cavalo de batalha do melhor republicanismo, embora venha sofrendo, por razões mercadológicas, abalos substanciais.
Não se pode ignorar, nem pôr toda a culpa na mídia. Até porque o sistema midiático não é nem uniforme, nem impermeável. E jamais monolítico.
Quando o Legislativo se esconde, o Judiciário claudica, o Executivo embaralha os departamentos, resta a imprensa. E ela tem feito o seu trabalho.

EDUARDO PORTELLA , 73, escritor e professor emérito da UFRJ, membro da Academia Brasileira de Letras, é diretor de Pesquisa do Colégio do Brasil e da "Revista Tempo Brasileiro", a qual fundou há 43 anos. Foi ministro da Educação, Cultura e Esportes (governo João Figueiredo), diretor-geral-adjunto da Unesco (1988-1993) e presidente da Conferência Geral da Unesco (1997-1999).


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