UOL




São Paulo, domingo, 02 de março de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY

Caveiras e morcegos

RIO DE JANEIRO - Os saudosistas de todos os tamanhos e feitios, e seus assemelhados, costumam lamentar que o Carnaval de hoje não se compara ao de antigamente. Citam as marchinhas alegres, as fantasias extravagantes, as casas enfeitadas de serpentinas, os lança-perfumes.
Pela faixa etária, eu deveria engrossar a turma nostálgica, embora não seja nostálgico, mas dado a melancolias várias e sofridas.
Contudo não sou dos que atiram pedras no Carnaval de agora. Ele é cômodo: basta desligar a TV e ele deixa de existir. E, se tenho a telinha iluminada, vejo coisas deslumbrantes, não exatamente as fantasias e as alegorias, mas o mulherio farto e suculento que nos é servido em close.
Já nos Carnavais de outrora, se havia um cheiro de lança-perfume no ar e as melodias eram melhores, para compensar havia uma multidão de caveiras e de morcegos espalhados por todas as ruas e bairros e nos bondes, e, de repente, entrava uma caveira saliente dentro de nossa casa, com uma vela na mão e um pires na outra, no qual o pai pingava sempre uns tostões.
Eu tinha pavor das caveiras. Quando as pequenas fogueiras nas calçadas começavam a esquentar os tamborins para os ensaios que anunciavam um novo Carnaval, eu começava a suar frio, temendo as caveiras com suas mortalhas brancas, a cruz preta nas costas, o gargalhar de um outro mundo que não era o meu.
Também tinha medo dos morcegos. Para perder o medo, num Carnaval dos anos mais antigos do passado, aceitei a máscara de morcego que fedia a papelão e cola. O pai a comprara para mim e ficara orgulhoso porque o filho, na opinião dele, era um "homem".
Saí pelas ruas de Paquetá para assustar outros meninos como eu. De repente, ao dobrar a esquina da rua Tomás Cerqueira com a praia de São Roque, em cuja igrejinha meus pais se casaram, esbarrei em outro morcego. Corri. Acho que estou correndo até hoje.


Texto Anterior: Brasília - Eliane Cantanhêde: Guerra é guerra
Próximo Texto: Antônio Ermírio de Moraes: A guerra dos grampos
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.