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TENDÊNCIAS/DEBATES
O suicídio de Vargas
RODOLFO KONDER
Meio século atrás, 50 invernos
atrás, fomos todos convocados a
ouvir a diretora do colégio Mello e Souza, no tumultuado pátio central. Ela era
uma mulher habitualmente nervosa;
naquele momento, parecia histérica.
Anunciou com voz estridente que o presidente Getúlio Vargas acabava de se
matar. Disse que devíamos sair da escola, em ordem, e seguir, sem perda de
tempo, para nossas casas. Atos de violência, saques e depredações aconteciam em algumas áreas do centro do
Rio de Janeiro. O clima era de medo e
insegurança.
Alguns alunos se entreolhavam, perplexos. Maria Alice começou a chorar.
Ao meu lado, Luiz Fernando comentou:
"Já foi tarde". Sorri de maneira discreta,
porque também não simpatizava com o
presidente morto.
Luiz Fernando e eu deixamos o Mello
e Souza, pegamos um bonde, na avenida Nossa Senhora de Copacabana, e fomos encontrar o amigo Renato Cláudio,
no Bar do Zé, Posto 6, para disputar
umas partidas de sinuca. Cigarro na boca, cerveja na prateleira, taco na mão,
começamos a jogar.
Em diversas partes da cidade, multidões enraivecidas se deslocavam pelas
ruas, promovendo atos de vandalismo e
queimando jornais que faziam oposição
ao presidente que saía de cena. Mesmo
concentrado no jogo, tentando encaçapar a bola da vez, eu pensava naquele
homem polêmico que cometera suicídio, horas antes. Conhecia sua importância, como o político que por mais
tempo exercera a Presidência da República.
Sabia que Getúlio era gaúcho de São
Borja e tinha 71 anos ao morrer. Chefiara um governo provisório, organizado
logo após a Revolução de 1930, até ser
eleito presidente da República pela Assembléia Nacional Constituinte, em
1934. Tornara-se ditador a partir de
1937 (em minha casa sempre ouvi histórias dos tempos do Estado Novo, até
porque meu pai, Valério Konder, foi
uma das muitas vítimas da repressão
getulista). Mas acabara deposto, em
1945, como evidente conseqüência da
derrota da Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial.
Sabia que o ditador deposto havia reconquistado a Presidência, nas urnas,
em 1951. Casado com d. Darcy, era pai
de muitos filhos. Formara-se em direito.
Seu pai, Manuel Vargas, participara de
inúmeras batalhas na Guerra do Paraguai, primeiro como cabo e sargento,
depois como tenente, capitão e coronel.
Mas também sabia que sua nova roupagem de carneiro não lhe roubara o espírito de lobo -por isso o seu suicídio
não me emocionava mais profundamente.
Getúlio teve presença destacada em nossa história, mas foi mais um político das sombras do que da luz e da liberdade
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Hoje sei que Getúlio criou a Justiça do
Trabalho e a Consolidação das Leis Trabalhistas. O Conselho Nacional do Petróleo e a Companhia Siderúrgica Nacional. Construiu Volta Redonda e implantou uma política nacionalista. Na
sua segunda gestão, enfrentou pressões
e viveu uma crise sem precedentes. Mas
os fatos mostraram que ele não perdera
as garras e que, sob o Palácio do Catete
"corria um rio de lama".
Os tempos haviam mudado e ele não
percebera. Acuado, pedira um "afastamento temporário", até que as irregularidades do seu governo fossem investigadas. O Exército rejeitou seu pedido.
Diante do impasse, escolheu a morte.
Getúlio Vargas teve presença destacada em nossa história, mas, como Juan
Domingo Perón, na Argentina, foi mais
um político das sombras, do lado escuro da vida nacional, do que da luz e da liberdade. Saiu da vida para entrar na história, porque isso também acontece
com todos os ditadores, com todos os
inimigos da democracia. Eles entram,
sim, na história, mas sempre pela porta
dos fundos.
Luiz Fernando, Renato Cláudio e eu
jogamos sinuca durante mais de duas
horas. O Bar do Zé estava quase vazio.
Sentíamos a dramaticidade e a tristeza
daqueles momentos. Apesar disso, não
nos identificávamos com o suicida nem
éramos solidários com ele, um homem
que já fora incensado e poderoso, mas
que se afogara na insuportável solidão
dos derrotados.
Tudo isso aconteceu 50 invernos
atrás.
Rodolfo Konder, 64, jornalista e escritor, é diretor cultural da UniFMU. Foi secretário da Cultura
do município de São Paulo (gestões Paulo Maluf
e Celso Pitta).
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