São Paulo, segunda-feira, 02 de agosto de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O suicídio de Vargas

RODOLFO KONDER

Meio século atrás, 50 invernos atrás, fomos todos convocados a ouvir a diretora do colégio Mello e Souza, no tumultuado pátio central. Ela era uma mulher habitualmente nervosa; naquele momento, parecia histérica. Anunciou com voz estridente que o presidente Getúlio Vargas acabava de se matar. Disse que devíamos sair da escola, em ordem, e seguir, sem perda de tempo, para nossas casas. Atos de violência, saques e depredações aconteciam em algumas áreas do centro do Rio de Janeiro. O clima era de medo e insegurança.
Alguns alunos se entreolhavam, perplexos. Maria Alice começou a chorar. Ao meu lado, Luiz Fernando comentou: "Já foi tarde". Sorri de maneira discreta, porque também não simpatizava com o presidente morto.
Luiz Fernando e eu deixamos o Mello e Souza, pegamos um bonde, na avenida Nossa Senhora de Copacabana, e fomos encontrar o amigo Renato Cláudio, no Bar do Zé, Posto 6, para disputar umas partidas de sinuca. Cigarro na boca, cerveja na prateleira, taco na mão, começamos a jogar.
Em diversas partes da cidade, multidões enraivecidas se deslocavam pelas ruas, promovendo atos de vandalismo e queimando jornais que faziam oposição ao presidente que saía de cena. Mesmo concentrado no jogo, tentando encaçapar a bola da vez, eu pensava naquele homem polêmico que cometera suicídio, horas antes. Conhecia sua importância, como o político que por mais tempo exercera a Presidência da República.
Sabia que Getúlio era gaúcho de São Borja e tinha 71 anos ao morrer. Chefiara um governo provisório, organizado logo após a Revolução de 1930, até ser eleito presidente da República pela Assembléia Nacional Constituinte, em 1934. Tornara-se ditador a partir de 1937 (em minha casa sempre ouvi histórias dos tempos do Estado Novo, até porque meu pai, Valério Konder, foi uma das muitas vítimas da repressão getulista). Mas acabara deposto, em 1945, como evidente conseqüência da derrota da Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial.
Sabia que o ditador deposto havia reconquistado a Presidência, nas urnas, em 1951. Casado com d. Darcy, era pai de muitos filhos. Formara-se em direito. Seu pai, Manuel Vargas, participara de inúmeras batalhas na Guerra do Paraguai, primeiro como cabo e sargento, depois como tenente, capitão e coronel. Mas também sabia que sua nova roupagem de carneiro não lhe roubara o espírito de lobo -por isso o seu suicídio não me emocionava mais profundamente.


Getúlio teve presença destacada em nossa história, mas foi mais um político das sombras do que da luz e da liberdade
Hoje sei que Getúlio criou a Justiça do Trabalho e a Consolidação das Leis Trabalhistas. O Conselho Nacional do Petróleo e a Companhia Siderúrgica Nacional. Construiu Volta Redonda e implantou uma política nacionalista. Na sua segunda gestão, enfrentou pressões e viveu uma crise sem precedentes. Mas os fatos mostraram que ele não perdera as garras e que, sob o Palácio do Catete "corria um rio de lama".
Os tempos haviam mudado e ele não percebera. Acuado, pedira um "afastamento temporário", até que as irregularidades do seu governo fossem investigadas. O Exército rejeitou seu pedido. Diante do impasse, escolheu a morte.
Getúlio Vargas teve presença destacada em nossa história, mas, como Juan Domingo Perón, na Argentina, foi mais um político das sombras, do lado escuro da vida nacional, do que da luz e da liberdade. Saiu da vida para entrar na história, porque isso também acontece com todos os ditadores, com todos os inimigos da democracia. Eles entram, sim, na história, mas sempre pela porta dos fundos.
Luiz Fernando, Renato Cláudio e eu jogamos sinuca durante mais de duas horas. O Bar do Zé estava quase vazio. Sentíamos a dramaticidade e a tristeza daqueles momentos. Apesar disso, não nos identificávamos com o suicida nem éramos solidários com ele, um homem que já fora incensado e poderoso, mas que se afogara na insuportável solidão dos derrotados.
Tudo isso aconteceu 50 invernos atrás.

Rodolfo Konder, 64, jornalista e escritor, é diretor cultural da UniFMU. Foi secretário da Cultura do município de São Paulo (gestões Paulo Maluf e Celso Pitta).


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