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São Paulo, terça-feira, 02 de dezembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Agredidos pela realidade

BERTRAND DE ORLEANS E BRAGANÇA

O aniversário do 11 de Setembro trouxe-me à memória o documentário dos irmãos franceses Jules e Gedeon Naudet, no qual registraram o atentado que abalou o mundo há pouco mais de dois anos. Enquanto a civilização ocidental era atingida com fúria destruidora pelos arautos suicidas de um mundo fanático, anárquico, igualitário e místico, a câmera dos dois irmãos fixava para a posteridade primeiro a surpresa, depois o desconcerto e, por fim, a estupefação dos que naquele dia estavam no centro de Manhattan.
De tal documentário, gravou-se de modo muito vivo em meu espírito o depoimento de um jovem e decidido bombeiro que vira de perto a tragédia e perdera centenas de seus colegas: "De repente percebi o que sempre procurara negar, a existência do mal".
A atitude psicológica e a transformação operada no espírito do jovem bombeiro são exemplo candente do fenômeno para o qual os próprios norte-americanos cunharam a expressão "agredido pela realidade". A realidade o fazia ver aquilo que ele se esforçara sempre para não enxergar, embalado por uma ilusão confortável para seu espírito.


Os modos e os costumes foram se tornando cada vez mais arrojados na extravagância e na imoralidade


Ao me encontrar recentemente com uma figura de destaque do empresariado nacional, indagou-me ela se, diante das transformações profundas nas leis e costumes da sociedade e da desagregação moral da mesma, a TFP ainda encontrava espaço para sua atuação ou se, pelo contrário, o ambiente era cada vez mais asfixiante para ela.
A meu interlocutor deixou-o vivamente interessado saber que a TFP, diferentemente do que tudo levava a crer, conta com muitas dezenas de milhares de aderentes em todo o Brasil e que o mensário "Catolicismo", inspirado no pensamento de Plinio Corrêa de Oliveira, tem hoje mais de 50 mil exemplares de tiragem. Isso se deve, em considerável parte, ao fenômeno a que me referi acima, dos "agredidos pela realidade".
Essa expressão foi criada por Irving Kristol para definir, especificamente, os neoconservadores americanos, esquerdistas contundidos pelos efeitos perversos do comunismo. Mas, posteriormente, acabou por ser empregada para definir situações similares.
Boa parte de nossos contemporâneos, embalada pelos avanços do progresso material e técnico, desfrutando das múltiplas comodidades da existência atual, não via ou procurava não ver que a sociedade caminhava, a passos lentos mas decididos, para uma degenerescência à medida que se dava a subversão paulatina dos valores de ordem natural e moral. Entretanto a marcha da degradação acelerou-se. As modas, os modos e os costumes foram se tornando cada vez mais arrojados na extravagância e na imoralidade.
Até os arrojos das doutrinas e das práticas teológicas e pastorais do progressismo "católico" chegaram a extremos impensáveis.
A par dessa marcha acelerada, o acontecer humano passou a se assemelhar, cada vez mais, a uma engrenagem de desgraças e catástrofes, como se uma mão misteriosa e malfazeja o impulsionasse por um princípio caótico. Os avanços dos meios de comunicação, que nos colocam em contato quase instantâneo com qualquer parte do mundo, potencializaram os efeitos dessa engrenagem. Sintoma eloquente foi alguns jornais passarem a incluir em suas páginas a "boa notícia".
Agredidos por essa realidade de conjunto, a qual começava a atingir os extremos que julgavam ou queriam julgar impossíveis, muitos de nossos contemporâneos, no íntimo de seus espíritos, reagiram: "Até lá não vou". Outros passaram mesmo a considerar com simpatia as disposições de alma e os valores sociais, culturais, religiosos e morais que até havia pouco viam com antipatia ou horror e que a TFP, fiel a si mesma, sempre pregara.
Permita-me o leitor um exemplo.
Até a ruína do mundo soviético, o comunismo influenciava uma grande faixa de pessoas situadas entre a extrema esquerda e o centro. E incrementava nelas o sentimento de antidireitismo. Tais pessoas se sentiam atraídas, sem prevenções, pelos acenos que o comunismo lhes fazia à distância, de uma vida idílica numa sociedade "perfeita" porque igualitária.
Com a queda do Muro de Berlim e a consequente ruína do "império" soviético, escancarou-se o grande cortejo de desolação, de crimes e de miséria do comunismo, que o cardeal Ratzinger qualificou como "a vergonha de nosso tempo". Diante desse panorama, o edifício psicológico e mental de muitos desses nossos contemporâneos, a maior parte das vezes frouxamente ideologizados, sacudiu-se.
Juntamente com o surgimento das estranhezas, das objeções e do horror ao comunismo com o qual ainda ontem simpatizavam, esses "agredidos pela realidade" viram desaparecer dentro de si os mecanismos interiores que os impediam de simpatizar com a direita e até de rumar para ela. Isso explica, em boa medida, a aceitação da TFP pelo público. Isso explica também por que hoje a esquerda, envergonhada por esse monumental fracasso, camufla-se, disfarça-se de mil modos para iludir o público e, uma vez ascendida ao poder, retomar sua velha "revolução social".
O que certas esquerdas brasileiras amplamente coadjuvadas pelo progressismo "católico" parecem não compreender é esse fenômeno profundo na opinião pública. E, com sua marcha desenfreada rumo a uma utopia já tantas vezes fracassada, vão engrossando, inexoravelmente, as fileiras dos "agredidos pela realidade".

Bertrand de Orleans e Bragança é diretor de Relações Institucionais da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (www.tfp.org.br).


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