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São Paulo, quinta-feira, 03 de abril de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Contradições no seio do povo

EDUARDO GRAEFF

A desigualdade social no Brasil é uma realidade chocante, mas escorregadia. A meio caminho entre a pobreza e a riqueza extremas, há desníveis importantes que muitas vezes se escondem atrás da indignação retórica contra a desigualdade em geral. O Estado, a quem cabe diminuir essas distâncias, também as reproduz. Isso salta aos olhos na lista dos rendimentos pagos pelo governo federal, abaixo (em reais mensais):
a) R$ 15 por criança, até o limite de três crianças, ou R$ 45 por família é quanto o programa Bolsa-Escola paga a famílias em condição de extrema pobreza;
b) R$ 50 por família é quanto o Fome Zero prevê pagar;
c) R$ 240 é o valor do salário mínimo nacional e, por vinculação constitucional, do piso de aposentadoria do INSS e da assistência federal a idosos e portadores de deficiência;
d) R$ 1.561 é o teto de benefícios do INSS;
e) R$ 2.662 é a remuneração média do funcionário do Executivo federal, R$ 6.875 a do Legislativo e R$ 7.093 a do Judiciário;
f) R$ 8.500 é o teto de salários do Executivo, correspondente à remuneração do presidente da República;
g) R$ 12.720 é o salário de senador ou deputado federal, correspondente ao salário básico de ministro do STF;
h) R$ 17.100 é a remuneração aproximada de um ministro do STF, incluindo todas as gratificações previstas em lei.
Qualquer aumento num desses números afeta em milhões ou bilhões de reais a fatia que sobra para os outros no bolo finito do Orçamento. É na hora de escolher entre eles que se estabelece a diferença entre a retórica e a prática da redução das desigualdades. É bom ter isso em mente quando a discussão sobre o gasto federal pegar fogo, alimentada pelas propostas de reforma da Previdência, teto salarial no serviço público, reajuste do salário mínimo, reajuste dos funcionários, diretrizes orçamentárias para 2004.
O aumento do salário mínimo a partir do Plano Real ajudou a tirar milhões de brasileiros da miséria, principalmente pelos benefícios da Previdência e da Assistência Social. Especialistas respeitáveis garantem, no entanto, que, a esta altura, ajudar as jovens mães necessitadas e suas crianças por meio de programas focalizados, como o Bolsa-Escola, o Bolsa-Alimentação e o Fome Zero teria mais efeito na redução da pobreza do que aumentar os benefícios para os idosos. O bom, é claro, seria fazer os dois ao mesmo tempo.


O aumento do salário mínimo a partir do Plano Real ajudou a tirar milhões de brasileiros da miséria


O governo já havia avisado que não tinha muita margem para aumentar o salário mínimo neste ano. Em abril, quando apresentar o projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias, provavelmente se verá que tampouco vai ter muita margem para aumento em 2004.
O que fazer, nesse meio tempo, com o teto dos benefícios do INSS? Hoje o teto é um pouco maior do que o Dieese calcula como o piso desejável para cobrir as necessidades vitais do trabalhador e sua família (R$ 1.386 em janeiro). Pensando num sistema público que garantisse a todos uma aposentadoria modesta, mas digna, faria sentido manter o valor real do teto e priorizar a elevação do piso nos próximos anos. A CUT, no entanto, fala em elevar já o teto para o equivalente a até 20 salários mínimos. Isso poderia diminuir a resistência dos funcionários públicos a um teto de aposentadoria equivalente ao do INSS.
Além de manter a aposentadoria integral, os funcionários federais querem um reajuste linear de 46,95%, para uma margem de apenas 2,5% prevista no Orçamento.
Pelo menos no topo da escala, os membros do Congresso e da magistratura federal poderiam dar um tempo depois dos aumentos concedidos recentemente. Os aumentos, no entanto, deixaram para trás a remuneração do presidente da República. Isso pode dificultar o entendimento necessário entre os três Poderes para apresentarem em conjunto, como prevê a Constituição, um projeto de lei estabelecendo o teto de remuneração do funcionalismo em geral. Os governadores esperam por isso para estabelecer subtetos nos Estados e enquadrar os "marajás" que aproveitaram brechas legais para acumular somas fantásticas de gratificações e aposentadorias.
Escolhas difíceis, pressões políticas de administração complexa.
Há três saídas retóricas para escapar da dificuldade: a populista "de direita", a "de esquerda" e a corporativista.
A primeira é a que Collor consagrou no papel de "caçador de marajás", jogando o povo contra os funcionários públicos, sem se dar ao trabalho de separar os abusos e a remuneração razoável dos altos funcionários.
A segunda é a que o PT e seus aliados exploraram até ontem, como defensores do povo, dos funcionários e do Estado nacional contra os tubarões capitalistas banqueiros, especuladores, sonegadores, as multinacionais e o FMI.
A terceira é a dos sindicatos, associações e altos funcionários que querem porque querem o que lhes parece justo e devido, sem nunca "botarem o dedo no Orçamento" para ver se é possível, como reclamou o presidente Lula depois de uma audiência à CUT.
Não há fórmula simples de justiça contra essas falsas saídas. Existe a fórmula democrática. Ela não depende de supostos inimigos de classe, do povo ou da pátria para definir o bem comum. Aposta, em vez disso, no debate público, na busca de consenso e na aceitação da vontade da maioria para arbitrar interesses desiguais, mas legítimos.
É espantoso como o Brasil tem conseguido aplicar essa fórmula, com toda a crueza e a complexidade da desigualdade social no país. Na alternância de poder, a democracia brasileira deu sinais fortes de normalidade institucional e elegeu um presidente que é um símbolo de igualdade. A agenda política dos próximos meses é um teste para a capacidade da nova maioria e da minoria de produzirem decisões que levem a novas vitórias sobre a desigualdade.

Eduardo Graeff, 53, sociólogo, foi assessor parlamentar e secretário-geral da Presidência da República (governo Fernando Henrique).


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