São Paulo, sábado, 03 de agosto de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Ilegal e temerário

NÃO


A polícia deve usar o auxílio de detentos em suas operações?


JOÃO JOSÉ SADY

A infiltração de agentes no interior de grupos criminosos com o intuito de desvendar atividades ilícitas é expediente largamente utilizado pelas forças de repressão de diversos países, tendo chegado à nossa legislação, de forma bem clara, com a promulgação da lei 10.217, de abril de 2002. Até o advento da lei em questão, praticar a referida tática constituía ilegalidade, já que a administração pública só pode fazer o que a lei expressamente lhe permite.
Depois daquela data, o Estado pôde usar a tática de infiltração, desde que por meio de servidor público, admitido mediante concurso, formado por uma escola de polícia e treinado especificamente para a empreitada de acobertar-se sob falsa identidade e imiscuir-se entre bandidos. Agindo sob tal disfarce, o agente policial terá a incumbência de angariar a confiança do grupo e utilizá-la para conseguir provas que possibilitem a prisão dos delinquentes.
Construir disfarce desse tipo exige que o agente policial se porte como criminoso, de sorte a convencer o bando sob suspeita de que é elemento de idêntica periculosidade e falta de escrúpulos. Como poderá manter tal disfarce no dia em que a quadrilha da qual participa vier a assaltar, matar ou coisa que o valha? Desembocar em tal situação, claramente previsível, colocará o agente policial num claro dilema, já que a preservação do disfarce dependerá de ele se omitir de evitar o crime ou até se ver obrigado a participar do delito.
Todos os anos, a polícia expulsa largo contingente de policiais que cedem à sedução de se bandear para o outro lado e se associar aos criminosos. Essa contaminação com o crime é perigo grave no policiamento ostensivo e terá muito maior impacto se o agente estiver vivendo como membro de uma comunidade de criminosos. Resistir a esse cântico enganoso exige que se disponha de agente policial muito bem treinado e com altas qualidades de integridade.
Como seria, então, possível pensar em imputar tal tarefa a um criminoso comum, a ser retirado da prisão e seduzido com promessas de qualquer natureza? Engajar o presidiário em missão dessa envergadura, sem que possua a formação de policial e sem que receba prévio treinamento especializado, expõe este tipo peculiar de recruta a ser descoberto e morto. Expor o presidiário a tal risco implica considerá-lo como "carne de canhão", elemento descartável, cuja vida é um investimento barato.
De nada vale o argumento de que esse tipo de "agente" não precisará fingir que é criminoso, uma vez que já é oriundo daquela comunidade à qual tentará se integrar. No entanto o fato de ser efetivamente um bandido, e não alguém a se fazer de meliante, implica dar liberdade a um preso condenado, em cuja mente não subsiste nenhum valor moral que o desestimule quanto à prática de crimes.
Aqui fora ele poderá ser mais um a assaltar, sequestrar etc., com a diferença de que estará cometendo crimes a serviço do Estado, com armas fornecidas pelo Estado, o que seria um rematado absurdo e uma horrenda ilegalidade.
No caso do policial, existem as barreiras de sua moralidade a impedir que ele se deixe corromper e passe a agir em favor do outro lado dessa guerra. No caso do preso, contudo, teremos um homem altamente impregnado pelo código de "valores" da criminalidade, que será retirado da prisão e recolocado aqui fora, onde poderá voltar à boa vida de prazeres e de assaltos.
Ao retornar às ruas, após haver passado certa temporada trancafiado, o condenado viverá embebido do desejo de se desvencilhar de qualquer forma imaginável de monitoramento na primeira oportunidade. Como partilha a cultura daqueles a quem está a espionar, a tentativa de escapar será sempre por ele avaliada, apenas, em termos da relação entre custo e benefício. Tais razões mostram a inconveniência de utilizar presidiários para trabalhos de infiltração em quadrilha.
A principal razão contra essa prática, contudo, reside em sua gritante ilegalidade. A ordem jurídica proíbe que a administração pública faça qualquer coisa que não lhe seja expressamente permitida. Ora, não há lei que permita utilizar presos para tal finalidade, logo tal conduta é ilegal.
No entanto há alguns que discordam desse modo de ver as coisas. Juízes que autorizaram, promotores que concordaram, autoridades que executaram. Todos confessaram haver se congregado para essa empreitada. A interpretação final dar-se-á, obviamente, em eventual ação penal. Caso o Judiciário lhes dê razão, tudo passará em brancas nuvens, caso se reconheça a ilegalidade da conduta, haverão todos de responder pelo delito de prevaricação.


João José Sady, 53, doutor em direito das relações sociais pela PUC-SP, professor associado na Faculdade de Direito da Universidade São Francisco, é coordenador da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP.


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