São Paulo, domingo, 03 de novembro de 2002

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HISTÓRIA, RAZÃO E FÉ

A notícia ganhou as primeiras páginas de vários jornais em todo o mundo. É compreensível. Um ossário provavelmente fabricado por volta de 60 d.C. achado nas cercanias de Jerusalém com a inscrição aramaica "Ya'akov bar Yosef akhui di Yeshua" (Tiago, filho de José, irmão de Jesus) pode ser a mais antiga referência a Cristo já encontrada e uma das poucas documentações extrabíblicas a corroborar sua existência.
Embora pesquisadores tenham recebido a descoberta com cautela e não descartem tratar-se de uma fraude, há vários indícios de que o achado possa ser autêntico. O estilo cursivo da caligrafia, bem como o hábito de guardar restos mortais em ossários, é consistente com a época em que Tiago, segundo a tradição o irmão de Jesus, morreu apedrejado.
Mais, o cientista responsável pela divulgação da notícia, André Lemaire, da Sorbonne, é bastante reputado. Além disso, o Instituto Geológico de Israel não encontrou traços de pigmentos modernos ou ferramentas contemporâneas, o que indicaria uma falsificação mais grosseira.
Supondo que a peça seja autêntica, a probabilidade de o Tiago da inscrição ser o irmão de Jesus é considerável. Embora Tiago, José e Jesus fossem nomes comuns na Jerusalém do 1º século, as chances de os três nomes aparecerem nessa ordem são pequenas. Também é sintomático o fato de que não era hábito dos judeus indicar os nomes de irmãos em urnas funerárias. Uma explicação para a menção pode ser a proeminência do irmão, o que reforça a suspeita de que o ossário é o do Tiago bíblico.
Por mais tentador que seja ver na peça uma prova histórica da existência de Cristo, em termos estritamente científicos a dúvida não foi dirimida. Embora a descoberta arqueológica pareça consistente, todas as "provas" que ela traz são circunstanciais. Para dificultar as coisas, o ossário não foi encontrado em escavações, mas levado ao pesquisador por um colecionador, que o obteve de saqueadores de sítios arqueológicos. Parte do valor explicativo de descobertas como essa se perde quando elas são retiradas de seu contexto.
No fundo, o que se pode dizer do ossário é que ele é interessante, quase uma curiosidade. Embora muitos cristãos, especialmente os católicos, gostem de venerar relíquias, não são esses objetos que definem a fé. Na verdade, tentar provar a fé por meio da ciência costuma ser contraproducente. O discurso religioso e o científico não combinam. É muito difícil conciliar, por exemplo, a literalidade do relato bíblico da criação do mundo, o "Gênesis", com as evidências geológicas e biológicas a respeito do surgimento do mundo e da vida.
Isso não significa que seja impossível para uma pessoa acreditar em Deus e na ciência simultaneamente. É preciso apenas que o fiel interprete as Escrituras de forma não-literal ou que separe bem as questões de fé de suas convicções científicas.
No fundo, tinha razão Tertuliano (155-220) quando afirmou "Credo quia absurdum" (creio porque é absurdo). Com isso, o teólogo cristão quis dizer que a base da fé é o milagre, isto é, o que contraria as leis da natureza e a ciência.


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