São Paulo, domingo, 03 de novembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

A mudança a caminho

MARILENA CHAUI

Em política há ações e acontecimentos com força para se tornarem simbólicos. É assim que podemos contrapor dois momentos simbólicos que marcam a política brasileira entre 1990 e 2002: o primeiro nos leva de volta ao "Bolo de Noiva", que inaugurou a era Collor; o segundo, à pergunta singela do presidente eleito da República aos âncoras do "Jornal Nacional", da Rede Globo, na noite de 28 de outubro de 2002.
No final da campanha presidencial de 1989 e na fase de transição entre novembro de 89 e janeiro de 90, um fato novo marcou a política brasileira: em primeiro plano, tanto no discurso como nos debates e na prática, veio a economista Zélia Cardoso de Mello com sua equipe técnica. As decisões fundamentais partiam desse grupo, que se reunia em Brasília num edifício apelidado Bolo de Noiva, e de lá vieram as medidas econômicas que definiram o governo Collor, no qual o discurso político foi suplantado pelo técnico-econômico.
Neste, surgia, imperial, uma nova figura, o mercado, cuja fantasmagoria só entraria em pleno funcionamento no período 1994-2002, quando os brasileiros passaram a ouvir curiosas expressões, tais como "os mercados estão nervosos", "os mercados se acalmaram"; como se "os mercados" fossem alguém!
Na noite de 28 de outubro de 2002, no "Jornal Nacional", no momento final, quando os âncoras falaram das cotações das Bolsas de Valores, do dólar e do real, e sobre a agitação e calmaria d" "os mercados", o presidente da República eleito, que estava sendo entrevistado, perguntou com um sorriso levemente irônico: "Vocês não têm outros assuntos? Cadê a fome, o desemprego, a miséria, a desigualdade social?".
Essa indagação singela, unida ao pronunciamento feito algumas horas antes, anunciando a criação da Secretaria de Emergência Social, cuja prioridade é o combate à fome, demarcou simbolicamente o novo campo da política no Brasil: os direitos civis e sociais são prioritários e comandam as ações técnico-econômicas, pois a democracia é a única forma política em cujo núcleo está a idéia de direitos; tanto de sua criação pela sociedade, como de sua garantia e conservação pelo Estado.
O Bolo de Noiva simbolizou a entrada do país no modelo neoliberal. O pronunciamento e a pergunta do novo presidente simbolizam a saída desse modelo. Entre esses dois momentos intercalam-se os governos de Fernando Henrique Cardoso, que tornaram esse modelo hegemônico. Para tanto, foram mobilizadas as duas grandes ideologias contemporâneas: a da competência e a da racionalidade do mercado.
A ideologia da competência afirma que aqueles que possuem determinados conhecimentos têm o direito natural de mandar e comandar os que supostamente são ignorantes, de tal maneira que a divisão social das classes aparece como divisão entre dirigentes competentes e executantes que apenas cumprem ordens. Essa ideologia, dando enorme destaque à figura do "técnico competente", tem a peculiaridade de esquecer a essência mesma da democracia, qual seja, a idéia de que os cidadãos têm direito a todas as informações que lhes permitam tomar decisões políticas, porque são todos politicamente competentes para opinar e deliberar, e que somente após a tomada de decisão política há de se recorrer aos técnicos, cuja função não é deliberar nem decidir, mas implementar da melhor maneira as decisões políticas tomadas pelos cidadãos e por seus representantes.


O neoliberalismo não é, de maneira nenhuma, a crença na racionalidade do mercado e o enxugamento do Estado


Por sua vez, a ideologia neoliberal afirma que o espaço público deve ser encolhido ao mínimo, enquanto o espaço privado dos interesses de mercado deve ser alargado, pois considera o mercado portador de racionalidade para o funcionamento da sociedade. Ela se consolidou no Brasil com o discurso da modernização, no qual modernidade significava apenas três coisas: enxugar o Estado (com as privatizações e a redução dos gastos públicos com os direitos sociais), importar tecnologias de ponta e gerir os interesses da finança nacional e internacional.
Essa ideologia propagou-se pela vida cotidiana brasileira, bastando observar o que aconteceu nos noticiários. As cotações das Bolsas de Valores do mundo inteiro -assim como as das moedas-, o comportamento do FMI e dos bancos privados passaram para as primeiras páginas dos jornais, para o momento nobre dos noticiários de rádio e televisão, alguns canais chegando a manter na tela faixas com as cotações das Bolsas e das moedas minuto por minuto.
A subida ou descida do valor do dólar, do euro e do real, o "risco Brasil", as falas dos dirigentes do FMI, do Banco Central norte-americano, dos economistas ingleses, franceses e alemães passaram a ocupar o lugar de honra e, nos noticiários matinais, assumiram a aparência de uma espécie de oração ou de missa, equivalentes ao que se passa nas rádios e canais de televisão religiosos.
Na verdade, porém, o neoliberalismo não é, de maneira nenhuma, a crença na racionalidade do mercado e o enxugamento do Estado, mas é a decisão de cortar o fundo público no pólo de financiamento dos bens e serviços públicos (isto é, dos direitos sociais) e maximizar o uso da riqueza pública nos investimentos exigidos pelo capital, fazendo o Estado assegurar-lhe recursos em detrimento dos direitos sociais.
Assim sendo, torna-se claro (como tão bem compreenderam os eleitores) que a prática democrática está demarcada como luta por uma nova gestão do fundo público, na qual a bússola é a defesa dos direitos sociais. Eis por que o presidente eleito começou a convocar corações e mentes de toda a sociedade para um pacto de luta contra as desigualdades e exclusões sociais, em nome da justiça e da dignidade humana.
Poder-se-ia conjeturar que há nessa convocação risco de populismo. Não há. E por um motivo muito simples: o populista (via de regra pertencente à classe dominante) pretende tutelar o povo, que não é percebido como cidadão e ao qual são feitos favores. Lula foi formado numa política sindical nova, na qual não há lugar para a relação de tutela e de favor, mas de verdadeira representação entre os iguais. Precisamente essa igualdade impede um outro risco, qual seja, o messianismo, pois o líder messiânico é visto pelos liderados como um escolhido divino que não está no mesmo nível que eles, porque participa dos desígnios da divindade, realizando uma missão definida pelo "Alto" como batalha final entre o bem e o mal.
A formação e a história políticas do presidente eleito, pautadas pelo valor conferido à cidadania, vão na direção exatamente contrária à das tradições populista e messiânica.
Hoje, portanto, a mudança não está apenas no fato historicamente gigantesco de um operário de esquerda ter sido democraticamente eleito, com uma maioria esmagadora e sem precedentes, para a Presidência da República do Brasil, na primeira e verdadeira alternância de poder em nosso país; mas também na afirmação de uma outra perspectiva política, simbolicamente anunciada no pronunciamento do novo presidente e na mensagem contida em sua pergunta aos âncoras da Rede Globo.


Marilena Chaui, 61, professora de filosofia política e história da filosofia moderna da USP, é autora, entre outras obras, de "A Nervura do Real" (Companhia das Letras).


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Vicente Amato Neto e Jacyr Pasternak: Vacinas imbatíveis

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.