São Paulo, domingo, 04 de janeiro de 2004

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O sertão do abandono

MARCO ANTONIO VILLA


Os 15 milhões de habitantes do semi-árido continuam os párias do Brasil. Deles ninguém fala, ninguém os visita

Apesar da proximidade da grande seca de 2005, já prevista desde o final do século passado, o presidente Lula mantém a mesma política do governo anterior em relação ao semi-árido: o absoluto descaso quanto às necessidades da região. Se nada foi feito para se poder conviver com uma longa seca, mais grave é a ausência de um projeto de desenvolvimento para o semi-árido.
As agências governamentais voltadas à região estão desativadas desde 1999, como a Sudene -esta ainda está passando por um processo de reestruturação, mas até hoje não foi concluído- ou o Departamento Nacional de Obras contra as Secas. O Banco do Nordeste do Brasil foi loteado no banquete da base política governista e mantém o mesmo perfil das últimas décadas: é um generoso caixa para atender as demandas dos oligarcas nordestinos, especialmente nos momentos de votações importantes no Congresso Nacional.
O Nordeste como região-problema é uma velha construção das elites sulistas. Justifica o recebimento de ajuda somente nos momentos de uma crise, como nas grandes secas dos séculos 19 e 20, dirige os investimentos do Estado para outras regiões que não são "problemas" e afasta o interesse do capital privado, pois ninguém quer investir em um local fadado ao fracasso. Dessa forma, durante os quase 200 anos do Brasil independente, o Nordeste e, em especial, o semi-árido, ficaram relegados a um plano secundário, principalmente após a adoção do regime republicano. Sem poder político e estando o eixo econômico do país localizado no Sul, restou à região viver das migalhas enviadas pelo governo federal, com a complacência da elite política regional.
Esperava-se que esse quadro desolador fosse alterado com a ascensão de um nordestino à presidência da República. Lula nasceu no sertão e foi obrigado a migrar, assim como grande parte da sua família, devido aos efeitos das secas e do poder coronelístico, que não é pouco. Mas, infelizmente, nada ocorreu. O semi-árido continua abandonado e os sertanejos sobrevivem graças ao Bolsa-Escola e, principalmente, à aposentadoria rural. Os cartões magnéticos dos aposentados são disputados pelas famílias como um verdadeiro tesouro.
A escassez de água para consumo doméstico, que poderia ser resolvida com um programa de construções de cisternas, é ignorado pelo governo. As ONGs que atuam na região lutam pela construção de 1 milhão de cisternas até 2005. O preço de cada uma é R$ 450 e permite que uma família de seis pessoas possa ter água potável. Com somente R$ 450 milhões estaria resolvido o problema de consumo de água de 6 milhões de pessoas. Só para efeito de comparação, no escândalo da construção do prédio do TRT de São Paulo foram desviados R$ 169 milhões -40% do necessário para a construção das cisternas.
Em vez de propiciar condições às comunidades de armazenar água, tanto para consumo doméstico como para as atividades agrícolas ou da pecuária, o governo desenterra a idéia faraônica da transposição das águas do rio São Francisco, proposta desde 1818, orçada em US$ 3 bilhões e que atenderá aos interesses do agronegócio nordestino.
Até hoje o governo não apresentou um projeto que criasse as condições para que no semi-árido fosse desenvolvido um programa que gerasse emprego e renda. As estradas estão abandonadas, impedindo que a produção de alimentos ou de derivados da pecuária possa chegar aos mercados. A migração continua, só mudando o destino: ora o Sudeste, ora o Centro-Oeste, ora as capitais nordestinas. A desertificação vai invadindo áreas que foram, num passado recente, produtivas. Do mundo desenvolvido, só se vêm as embalagens, espalhadas por toda parte, como se a profecia atribuída a Antonio Conselheiro fosse de que o sertão vai virar plástico.
O descalabro chegou a tal grau que o ministro da Integração Regional, responsável principal pelas políticas públicas na região e que pouquíssimas vezes visitou o semi-árido, não perdeu nenhuma oportunidade de participar das viagens internacionais do presidente. Na última, no Egito, fez questão de tirar uma foto sorridente, ao lado do presidente, tendo ao fundo as pirâmides de Gizé. O que estava fazendo o ministro? Será que negociava a importação de camelos, tais quais os que chegaram ao porto de Fortaleza em 1859?
São muitas as perguntas sem resposta em um ano de administração Lula. Os 15 milhões de habitantes do semi-árido continuam os párias do Brasil. Deles ninguém fala, ninguém sequer os visita. De eterno símbolo da nacionalidade -todo político gosta de repetir alguma frase de Euclides da Cunha, mesmo sem ter lido nenhuma página do escritor fluminense-, os sertanejos vivem à mingua, sem forças para romper com séculos de opressão e ignorados pelo poder central. Lá, desde sempre, o medo venceu a esperança. Criar condições para construir a cidadania no sertão significa desafiar o poder dos coronéis, os senhores do atraso. E esse enfrentamento tem de ser realizado pelo governo federal. Contudo o governo Lula não tem nenhum interesse nesse confronto.


Marco Antonio Villa, 47, historiador, é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos e autor de "Vida e Morte no Sertão - História das Secas no Nordeste nos Séculos XIX e XX" (Ática).


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