São Paulo, Domingo, 04 de Abril de 1999
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A moça e a estrela

CARLOS HEITOR CONY


Rio de Janeiro - Recém-chegado à Internet, só se utilizando dela para assuntos profissionais, foi com susto que abriu o correio eletrônico e deu de cara com a foto de um jovem loura, bonita, safra paulista.
Em pânico, procurou o amigo mais próximo para saber o que devia fazer. Esse amigo mais próximo, por azar, fui eu mesmo. Pouca valia podia oferecer, em matéria de computador sou iniciante e -ao mesmo tempo- eterno repetente. Nunca saio do lugar, e toda hora precisam me ensinar tudo, desde o começo.
Mesmo assim, dei uma olhada na telinha dele e vi a moça. Não entendi. Ela devia saber que o meu amigo é casado, mais do que isso, é bígamo confesso e proclamado. Além do mais tem idade para ser pai ou tio-avô de todas as donzelas que andam pela faixa dos 25 anos.
"Talvez não seja isso", explicou-me o amigo. "Deve ser uma jovem que não tem com quem conversar na cidade em que vive. Escolheu-me para cristo, para desabafar. Faço comentários na TV, e ela acha que tenho papo para tudo, deve ser isso."
Pergunto se ele respondeu aos e-mails da moça. Não, não tinha tempo nem sabia exatamente o que ela queria dele. Para demonstrar isso, abriu um dos últimos e-mails dela, em que havia apenas duas palavras em italiano, "tramontate, stelle".
Ele indagou: "O que é isso?". Expliquei o que sabia: pequeno trecho de uma ária de Puccini, "Nessun Dorma". Mil gravações no mercado, era só escolher. "O que significa?", quis saber o amigo. Disse que era meio intraduzível, o sentido geral era quando as estrelas se apagam, ou quando raia um novo dia.
Ficou sério. Creio que juntou as duas coisas, a foto da moça e o tramonto das estrelas. Desligou a telinha e acendeu um cigarro. Tive a certeza de que, tão logo se livrou de mim, mergulhou fundo na Internet. E navegou alucinado em busca da estrela, antes que ela se apagasse.


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