São Paulo, sexta-feira, 04 de outubro de 2002

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JOSÉ SARNEY

Do cacete à urna eletrônica

"Quem inventou eleição está no céu", era assim que meu avô Assuéro Ferreira, retirante da seca de 1921, quando chegou ao Maranhão, definia a guerra dos candidatos. Perguntei-lhe: "Por que no céu?" "Porque pagou todos os seus pecados aqui na Terra", respondia ele.
Roosevelt, o Franklin Delano, disse em sua eleição de 1940 que muitos não se incomodavam "pela democracia, mas com a democracia", aludindo àqueles que julgavam esse sistema complicado, trabalhoso e ilegítimo por causa da manipulação dos partidos, da coação do governo e do poder econômico. Foi em face dessas vulnerabilidades que Churchill definiu: "O sistema democrático era o pior do mundo; simplesmente não tínhamos um melhor".
João Lisboa, o grande historiador brasileiro, em sua obra monumental, o "Jornal de Timon", muito tratou de eleições, começando pelas eleições na Antiguidade até o sistema eleitoral do Império, das eleições a cacete, do voto censitário até as escolhas e os métodos de reconhecimento, quando não faltavam as atas falsas e a depuração. Quando o conselheiro Saraiva promoveu a reforma do sistema eleitoral, todos saudaram os novos tempos como um tempo de mudanças e de esperança na pureza das eleições.
Com a Velha República, a política dos governadores de Campos Sales criou representações legítimas, embora em processo ilegítimo. De um jeito ou de outro, com sistemas eleitorais marcados por todas as mazelas, a verdade é que as instituições políticas brasileiras foram obra dos estadistas e dos políticos brasileiros que, ao longo da história, fizeram o país. Com o nome de liberal, civilista, idealista, nefelibata ou utopista, criou-se, sedimentadamente, a consciência do poder civil, do poder político, síntese de todos os poderes. Até mesmo nos momentos de interregnos militares, sempre se dizia que as revoluções eram feitas para aperfeiçoar a "democracia", e nunca para substituí-la pela ditadura. Não se discutiam os valores da democracia, mas a realização imperfeita deles. Paradoxalmente, foi um civil, Getúlio Vargas, o único que contestou, na onda dos "ismos" dos anos 30, as excelências do regime democrático. As idéias de Chico Campos e do integralismo chegaram a seduzir Vargas com um modelo de poder pessoal. A Segunda Guerra Mundial encarregou-se de convertê-lo.
Como acontece num mundo transformado pela ciência e pela técnica, a urna eletrônica, o processo informatizado, projeto começado na minha Presidência com continuidade e sem interrupções, fez mais pela lisura da escolha democrática do que todos os discursos políticos e denúncias do modelo ao longo do tempo.
Acabou-se aquele tempo em que Rui Barbosa pregava e denunciava o "destino do país", "como um peru de recheio, em dia de bródio, entre amigos de boa chira".
Resta a reforma política. A coragem de matar o voto proporcional, uninominal, excrescência que não pode continuar, para avançarmos mais. Com o sistema de fortalecimento de partidos, até essa parafernália de números que irão dificultar a cabeça do eleitor desaparecerá.
Dia de eleição é dia de sonho, dia de cidadão. Depois caímos "na real", pois do Real já caímos faz tempo.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.



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