São Paulo, sexta-feira, 04 de outubro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A volta da esperança

ALAIN TOURAINE

A grande onda do liberalismo planetário começa a quebrar. Aqueles que ontem eram os heróis do mundo financeiro hoje aparecem como criminosos; a recuperação da economia mundial é incerta e a cruzada empreendida pelo presidente Bush atrai poucos voluntários. Mas os mais importantes sinais de mudança de estação só podem vir dos votos populares de resistência contra a ideologia ainda dominante.
É possível que a Suécia tenha acabado de dar um deles, ao proporcionar maioria aos social-democratas. Muito mais importante, porém, é o voto que o Brasil pode dar dentro de alguns dias e que já deu, ao garantir a Lula uma vantagem grande sobre seus concorrentes.
O Brasil conquistou uma certa solidez política, e os objetivos social-democratas de Fernando Henrique Cardoso foram atingidos -a redução nítida do analfabetismo e da mortalidade infantil. No plano internacional, FHC é de longe o mais respeitado dos presidentes latino-americanos. É porque os dois mandatos de FHC deixaram um Brasil mais sólido -mas tão desigual quanto antes- que o país pode optar por uma política nova, política essa possibilitada pela aliança de fato entre Lula, o candidato favorito na eleição presidencial, e FHC, que controla grande parte dos votos necessários a Lula para que ele possa contar com uma maioria no Congresso.
Seria um erro perigoso opor o provável próximo presidente ao presidente em final de mandato em termos para os quais não houvesse nenhuma solução política real. Pelo contrário, o que o Brasil pode fazer é consolidar o que foi conquistado desde o Plano Real e ir mais longe, por meio de um programa de transformação social que conte com o apoio ativo da maioria da população.
A maioria dos países do continente não está em condições de lutar contra a pobreza. Mais do que o México e pelo menos tanto quanto o Chile, o Brasil tem condições de fazer uma escolha que será compreendida no mundo inteiro e que convencerá outros países a tomarem decisões indispensáveis para lutar contra uma desigualdade social que constitui entrave ao desenvolvimento.


O Brasil conquistou uma certa solidez política e os objetivos social-democratas de Fernando Henrique foram atingidos


O PT vem se disciplinando há anos e exercendo responsabilidades importantes. Paralelamente, um apoio parlamentar vindo do PSDB e de outras formações é condição indispensável para que Lula possa exercer o poder. O patronato brasileiro apóia um candidato de grande valor, José Serra, economista reconhecido no palco internacional, e, se ele saísse vitorioso, o Brasil não seria exposto a perigo nenhum. Mas o Brasil pode fazer uma escolha que fará dele o líder do grande movimento mundial de rejeição de uma hegemonia americana que já deixou de ser aceitável para grande parte do mundo.
O futuro de todos nós depende menos de mudanças na conjuntura econômica do que de nossa capacidade de sermos atores responsáveis por nossa história. Lula tornou-se o símbolo dessa política voluntarista, de um desejo de intervenção democrática e pacífica num mundo submetido há tempo demais a forças impessoais que se preocupam com lucros muito mais do que com o bem-estar e que, em nome do "laissez-faire", negam-se a combater a desigualdade.
O mundo está em silêncio há dez anos, não porque o sofrimento e o desespero não sejam audíveis, mas porque as vítimas não dispõem de nenhuma língua e nenhuma organização para se transformarem em atores de sua própria libertação. A culpa é, em parte, dos que ainda falam uma língua que mais ninguém entende, quer sejam políticos, sindicalistas ou intelectuais, e, de outra parte, dos que despejam sobre nós o otimismo estúpido da publicidade.
Ninguém espera que o Brasil invente uma nova linguagem, mas começamos a ter a esperança de que ele rompa o silêncio opressor, que faça ouvir as vozes tão próximas daqueles que os poderosos nos querem fazer crer que estejam distantes, que sejam estrangeiros, marginais. Se as instituições e as práticas não se transformarem, e rapidamente, essas vozes irão desaparecer rapidamente numa catástrofe.
O Brasil pode, pelo contrário, falar a língua da esperança ao mesmo tempo que fala a da responsabilidade. Nem ele nem nenhum outro país precisa de uma erupção vulcânica ou de uma tempestade atravessada por raios e trovões. Ele precisa de palavras claramente pronunciadas e de projetos elaborados que permitam a todos os cidadãos passar por um novo aprendizado da esperança.
A partir de hoje os brasileiros podem construir uma síntese da modernização que vem sendo desenvolvida desde o êxito do Plano Real e de um espírito de justiça social que não pode mais suportar os custos da desigualdade.
Assim, o que está em jogo nesta eleição vai muito além do futuro político do Brasil. Trata-se, sobretudo, de escolher entre o silêncio dos sem esperança e a palavra daqueles que têm consciência da urgência das transformações que precisam ser empreendidas, ao mesmo tempo em que aceitam a prudência com que devem ser conduzidas, para que os brasileiros e os cidadãos de muitos outros países do mundo possam voltar a acreditar em sua capacidade de compreender sua situação e transformá-la.


Alain Touraine, sociólogo, é diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris.

Tradução de Clara Allain



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