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TENDÊNCIAS/DEBATES
A importância de ser brasileiro
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS
Espero que os meus patrícios não
se ofendam se eu confessar que,
neste período eleitoral, gostaria de ser
brasileiro. Para poder votar.
Contudo as razões do meu interesse
em votar decorrem do fato de eu não ser
brasileiro e avaliar o significado dos resultados das próximas eleições não apenas pelo seu impacto no país, mas sobretudo pelo seu impacto no mundo. A
importância de ser brasileiro decorre
precisamente do fato de o que acontece
hoje no Brasil ser importante para o resto do mundo. À luz desse futuro, são
dois os meus desejos e os meus votos:
ser brasileiro para votar em Lula, ser
gaúcho para votar em Tarso Genro.
As minhas razões para votar em Lula
são duas. A vitória de Lula representa a
verdadeira e exitosa conclusão da transição democrática iniciada em meados
da década de 80. A quem, como eu,
acompanhou de perto o Brasil nos últimos 20 anos não escapam as profundas
mudanças políticas que ocorreram não
apenas no nível das instituições, como,
sobretudo, no das práticas e das sociabilidades dos brasileiros no seu dia-a-dia.
O código social do "sabe com quem
está falando" foi pouco a pouco sendo
confrontado com a consciência e a linguagem dos direitos e da cidadania,
com a emergente capacidade coletiva
dos movimentos e das organizações populares de formular demandas e exigir o
comprometimento ético dos governantes. Em suma, ainda que de uma maneira seletiva e regionalmente desigual, está a emergir no Brasil uma nova esfera
pública, uma nova cultura política.
Sendo o Brasil um dos países mais injustos do mundo, essa emergência democrática está sempre à beira da frustração e da vulnerabilidade à ocorrência
de novos autoritarismos. Para que tal
não aconteça, tem de ser consolidada
através de práticas políticas éticas,
transparentes, participativas e redistributivas. Nenhum partido tem tantas
credenciais nesse domínio como o PT.
A segunda razão para votar em Lula
diz respeito ao momento da globalização neoliberal. Não são os críticos esquerdistas que põem hoje em causa o
sistema financeiro internacional, são as
vozes particularmente autorizadas dos
que o conhecem por dentro e têm acesso a informação que mais ninguém tem.
A irracionalidade e a injustiça do sistema são hoje do domínio público e o
consenso que se está a gerar a seu respeito não pode deixar de levar a transformações em curto prazo. Quem está
em melhores condições para governar
os países nos tempos que se avizinham?
Não, certamente, quem se formou na
obediência cega à ortodoxia, porque esse vai correr o risco de ser recorrentemente mais papista que o papa e não vai
ser capaz de explorar as novas capacidades de manobra que se vão abrir.
FHC governou o país num período de
fundamentalismo neoliberal e de algum
modo contribuiu para ele. No entanto o
futuro creditar-lhe-á o fato de, apesar
disso, não ter bloqueado a efervescência
democrática de que falei acima. O modelo que seguiu está hoje num beco sem
saída e é precisamente dessa efervescência democrática que advirão as energias
políticas para uma apropriação pacífica
e justa das novas condições. Daí que,
embora com isso possa chocar muitos
dos meus amigos (incluindo o FHC),
penso genuinamente que Lula é o melhor sucessor de FHC, único capaz de
ultrapassar o impasse a que a ortodoxia
chegou, resgatando o que ela não foi capaz de destruir.
No plano internacional, a vitória de
Lula significa a credibilidade de uma
transição pacífica e gradual por parte de
um grande país para um novo pacto financeiro e econômico global, mais
equilibrado e mais comprometido com
o bem-estar dos cidadãos.
Ainda que de uma maneira seletiva e regionalmente desigual, está a emergir no Brasil uma nova cultura política
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O meu segundo desejo é o de ser brasileiro e gaúcho, para poder votar em
Tarso Genro. Eis as razões. A primeira
diz respeito ao modo ímpar como Tarso
Genro soube transformar a sua reflexão
política num sistema e numa prática
político-administrativos capazes de
combinar igualdade e equidade, solidariedade e democracia, participação e
eficiência. Refiro-me, obviamente, ao
Orçamento Participativo, inovação institucional que tem ainda hoje em Porto
Alegre a sua melhor expressão.
Trata-se de uma inovação que pertence por inteiro ao PT gaúcho, mas a que
Tarso Genro soube dar uma expressão
particularmente consistente. Tarso
Genro é considerado internacionalmente um dos teóricos mais brilhantes
da democracia de alta intensidade, mas,
diferentemente de outros teóricos, tem
uma obra que fala eloquentemente por
ele. A segunda razão tem a ver com o fato de Porto Alegre e o Rio Grande do Sul
serem hoje o símbolo da viabilidade de
uma globalização alternativa, que combine os objetivos do desenvolvimento e
da eficiência com os objetivos da equidade e da democracia.
Porto Alegre é a cidade global das alternativas e o prestígio internacional
que daí lhe advém traduz-se em vantagens sociais e econômicas que podem
ser colhidas até por aqueles que, confinados a vistas curtas, rejeitam a idéia de que possa haver outra globalização para
além da neoliberal. Essa preeminência
internacional, que tem hoje uma concretização dramática no Fórum Social
Mundial, assenta-se na idéia de que a
democracia, a tolerância e a solidariedade, levadas a sério, contêm em si as sementes de um outro mundo possível,
mais justo e mais sustentável. É por isso
que a vitória de Tarso Genro, sendo
uma vitória gaúcha, é também uma vitória do mundo democrático .
Boaventura de Sousa Santos, 61, sociólogo, é
professor catedrático da Faculdade de Economia
da Universidade de Coimbra (Portugal).
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