São Paulo, segunda-feira, 04 de novembro de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

Vasto mundo

RIO DE JANEIRO - Levei um susto: ia distraído pela avenida Atlântica e vi o poeta Drummond sentado num banco, olhando para o trânsito que, para variar, dera um nó desgraçado. O poeta estava bastante bronzeado, ele, que nunca tomava muito sol. Só então descobri que não era o vate, mas uma estátua dele, ali colocada para comemorar o primeiro centenário de seu nascimento.
De longe, pelo menos, a semelhança é espantosa. Mas há alguma coisa de errado com ela. A idéia parece que foi copiada da estátua de Fernando Pessoa, em Lisboa, sentado na calçada da "Brasileira", não muito longe dos monumentos de Camões e de Eça.
Como mineiro, Drummond gostava do mar. Contudo, sua poesia nada tem de marinha -como a de Pessoa. Pelo contrário, ele é interiorano em todos os sentidos, no geográfico e no psicológico.
Mas, sempre que podia, ia ver o mar, ficava naquela mesma posição que a estátua eternizou, mas de frente para o mar, nunca voltado para as pistas do trânsito.
No dia 1º de abril de 1964, sendo ele meu vizinho no posto seis, telefonou-me para irmos à praia, ver o movimento de tropas que tomavam o forte de Copacabana. Estava chuviscando, ele prometeu levar um guarda-chuva e foi apanhar-me na portaria do prédio em que eu morava.
Vimos realmente as confusas operações à entrada do forte -um oficial da Marinha chutando um operário que dera um "viva" a Brizola. Esse seria o gancho para a minha crônica do dia seguinte, no "Correio da Manhã", onde Drummond e eu trabalhávamos.
Ele percebeu que eu ficara irritado com a violência do militar. Levou-me para um banco da calçada e convidou-me para sentar a seu lado. "Mundo, mundo, vasto mundo, mais vasto é o meu coração". Foi nesse verso dele que pensei, vendo o poeta olhando o horizonte.
Ficou olhando o mar, de costas para a confusão cívico-militar em execução. Eu entendi a sua lição.


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