São Paulo, Sábado, 05 de Junho de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A lua descorada dos mortos

CARLOS HEITOR CONY


Rio de Janeiro - No centro do auditório, a moça fez um gesto como se quisesse perguntar alguma coisa. Ele se atrapalhou com o que estava dizendo. Conseguiu ir até o fim. Só então ela se aproximou e deu-lhe um CD com trechos de "Turandot", o inarredável "Nessun dorma", "In questa Reggia", os trechos mais batidos. Ele tinha a ópera completa em duas versões, da Arena de Verona e do Covent Garden.
Agradeceu, olhou-a nos olhos, e somente no hotel descobriu que a moça escrevera na capa um verso solto da partitura: "A lua descorada dos mortos".
O povo de Pequim prepara-se para mais uma noite em que um pretendente de Turandot decide enfrentar os enigmas que ela proporá. Se decifrá-los, terá como prêmio o corpo branco e inatingível da princesa. Caso contrário, quando as estrelas se apagarem ("tramontate stelle"), ele morrerá.
Nenhum homem decifrará os enigmas de Turandot. Cada noite, quando a lua surge sobre o Palácio Real, o povo a invoca como a uma divindade maligna, "o squalida, o taciturna, o esangue, o amante smunta dei morti!".
A moça destacou o último verso, traduziu-o como "oh, amante descorada dos mortos" -podia ser amante exausta, ou amante descarnada dos mortos.
Fico com a moça: a lua descorada dos mortos. No coro da ópera, o povo invoca a lua como testemunha de mais um sacrifício, a imolação do homem diante da mulher impossível, cujo prêmio é a posse e como consolo é a morte.
Tudo bem. Mas que diabo a moça tentou dizer com aquele recado, metade ameaça, metade promessa? Como soubera que ele curtia aquele coro inicial de "Turandot", a lua subindo sobre o Palácio Real, o povo chamando-a de taciturna, de esquálida, de amante descorada dos mortos?
Revirou o CD em busca de vestígios da moça. Só então descobriu que ela também propusera um enigma que ele decifrará ou não, merecendo a noite de espera, a manhã incerta que trará o prêmio ou o castigo.


Texto Anterior: Brasília - Fernando Rodrigues: Sim, FHC não é Collor. Ainda
Próximo Texto: Luciano Mendes de Almeida: A eucaristia e o 'amor primeiro'
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.