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A lua descorada dos mortos
CARLOS HEITOR CONY
Rio de Janeiro - No centro do auditório, a moça fez um gesto como se quisesse perguntar alguma coisa. Ele se
atrapalhou com o que estava dizendo.
Conseguiu ir até o fim. Só então ela se
aproximou e deu-lhe um CD com trechos de "Turandot", o inarredável
"Nessun dorma", "In questa Reggia",
os trechos mais batidos. Ele tinha a
ópera completa em duas versões, da
Arena de Verona e do Covent Garden.
Agradeceu, olhou-a nos olhos, e somente no hotel descobriu que a moça
escrevera na capa um verso solto da
partitura: "A lua descorada dos mortos".
O povo de Pequim prepara-se para
mais uma noite em que um pretendente de Turandot decide enfrentar os
enigmas que ela proporá. Se decifrá-los, terá como prêmio o corpo
branco e inatingível da princesa. Caso
contrário, quando as estrelas se apagarem ("tramontate stelle"), ele morrerá.
Nenhum homem decifrará os enigmas de Turandot. Cada noite, quando
a lua surge sobre o Palácio Real, o povo a invoca como a uma divindade
maligna, "o squalida, o taciturna, o
esangue, o amante smunta dei morti!".
A moça destacou o último verso, traduziu-o como "oh, amante descorada
dos mortos" -podia ser amante
exausta, ou amante descarnada dos
mortos.
Fico com a moça: a lua descorada
dos mortos. No coro da ópera, o povo
invoca a lua como testemunha de
mais um sacrifício, a imolação do homem diante da mulher impossível, cujo prêmio é a posse e como consolo é a
morte.
Tudo bem. Mas que diabo a moça
tentou dizer com aquele recado, metade ameaça, metade promessa? Como
soubera que ele curtia aquele coro inicial de "Turandot", a lua subindo sobre o Palácio Real, o povo chamando-a de taciturna, de esquálida, de
amante descorada dos mortos?
Revirou o CD em busca de vestígios
da moça. Só então descobriu que ela
também propusera um enigma que ele
decifrará ou não, merecendo a noite
de espera, a manhã incerta que trará o
prêmio ou o castigo.
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