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TENDÊNCIAS/DEBATES
As finanças ocultas dos pobres
RICARDO ABRAMOVAY
É difícil entender por que são tão
escassos os estudos e as informações sobre as finanças das famílias pobres no Brasil. As formas pelas quais indivíduos de renda muito baixa enfrentam suas necessidades de liquidez variam e envolvem, na maior parte das vezes, a formação de redes sociais que tornam a própria sobrevivência possível.
Mas não é verdade que essas necessidades se reduzem à obtenção de crédito,
elas envolvem práticas diversas de poupança. Bonnie Brusky e João Paulo Fortuna ("Entendendo as Microfinanças
no Brasil: um Estudo Qualitativo de
Duas Cidades", BNDES, 2002) expõem
uma forma de poupança praticada por
pessoas de baixa renda, em Recife, a caixinha ou sorteio.
É a versão brasileira das conhecidas
associações informais de crédito e poupança rotativos, que a literatura internacional descreve em praticamente todo o mundo: grupos de dez a 12 pessoas
contribuem regularmente para a formação de um "bolo". No momento das
reuniões em que são feitos os depósitos,
o bolo é entregue a um dos membros,
por sorteio. Aquele que organizou o
grupo tem o privilégio de ser o primeiro
a receber os recursos. Esses grupos funcionam como forma de obtenção de
crédito e de acesso à poupança.
Nas favelas de Vijayawada, na Índia,
um coletor de depósito passa pelas casas recolhendo algumas parcas economias pelas quais seus poupadores não
receberão nenhuma remuneração. Ao
contrário, é o coletor que recebe uma
pequena proporção dos recursos como
recompensa por ter permitido que fossem colocadas de lado economias que,
de outra maneira, teriam desaparecido
no consumo familiar, como mostra o
trabalho de Stuard Rutheford, da Universidade de Manchester ("The Poor
and their Money - an Essay about Financial Services for Poor People").
Qual a importância e a extensão dessas modalidades de organização financeira das famílias pobres? Eis um tema
ao qual as ciências sociais brasileiras até
hoje não deram a menor atenção e cujo
conhecimento supõe minucioso trabalho de campo, muito mais do que a simples consulta a estatísticas vindas dos
bancos.
A poupança foi, até recentemente,
uma espécie de "metade esquecida" das
finanças dos pobres. Por mais precária
que seja sua situação, os indivíduos procuram se preparar para enfrentar gastos
referentes a seus ciclos de vida (casamento, enterro, nascimento de um filho), a emergências (morte de um animal, perda de emprego, doença) ou a
oportunidades de compras e investimentos. O livro "Abril Despedaçado",
de Ismail Kadaré (publicado pela Companhia das Letras e que inspirou Walter
Salles em seu último filme), expõe um
amplo sistema de poupança, essencial
para fazer frente a dívidas de sangue em
torno das quais se organizava toda a vida social das montanhas da Albânia antes da Segunda Guerra Mundial.
As práticas financeiras informais mostram que a moeda é um laço essencial na coesão de qualquer sociedade
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Como em tantos mercados imperfeitos, neste também um senhor da dívida
acabava se beneficiando do imenso esforço econômico das famílias envolvidas na engrenagem das vendetas. As organizações e as práticas financeiras informais mostram que a moeda é um laço essencial na própria coesão de qualquer sociedade, muito mais que um
simples meio de troca. E é por isso que o
crédito não pode ser compreendido
sem que, ao mesmo tempo, se estudem
diferentes estratégias de poupança das
famílias.
Por essa razão, pode-se dizer que a
noção de microcrédito é unilateral e
possui um viés fortemente assistencialista. Ela separa poupança e crédito. Os
gastos das famílias e suas necessidades
de liquidez não são estáveis no tempo e
o acesso, tanto à poupança como ao crédito, tem a função básica de ligar as duas
pontas do ano e atenuar as oscilações de
renda, sobretudo para aqueles que não
dispõem de um emprego formal. Assim, mais importante do que "dar crédito" é propiciar o pleno acesso a serviços
financeiros, fazendo do crédito a contrapartida da própria poupança.
As realidades brasileiras neste domínio estão anos-luz atrás do que vem sendo feito em outras partes do mundo. Os
bancos do povo (que são organizações
da sociedade civil de interesse público,
ou organizações não-governamentais)
podem emprestar, mas são legalmente
impedidas de captar poupança. Pior,
seu formato é basicamente voltado a
"repassar" recursos para beneficiários
de políticas públicas e não a abrir-lhes o
caminho de um conjunto variado de
serviços financeiros.
A valorização da iniciativa econômica
de populações vivendo em situação de
pobreza depende menos da disponibilidade de recursos governamentais para a
concessão de crédito do que de um ambiente institucional e de reformas legais
que estimulem o acesso dos mais pobres a organizações de finanças de proximidade.
Ricardo Abramovay é professor titular do Departamento de Economia da Faculdade de Economia e Administração da USP e professor do
Programa de Ciência Ambiental da universidade.
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