São Paulo, segunda-feira, 05 de julho de 2004

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MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

A cultura "ongueira"

SÃO PAULO - Não se discute que as chamadas organizações não-governamentais, as famosas ONGs, têm cumprido nos últimos anos um papel importante em diversas áreas de atividade pelo mundo afora. É fato que muitas delas vivem, na realidade, à sombra governamental ou de instituições internacionais com as quais governos colaboram, como a ONU ou bancos de fomento. Ainda assim, as ONGs podem ser consideradas, como se diz, um fenômeno do bem.
Como em tantas outras situações, também há uma cultura das ONGs. No caso, uma cultura não apenas no sentido, digamos, comportamental -as roupas, os hábitos, as preferências-, mas também no sentido propriamente artístico. O mundo das ONGs parece ter se transformado num grande receptáculo e reprodutor do que tempos atrás era a arte de esquerda, a cultura militante de conteúdo social.
É verdade que nem tudo pode ser colocado no mesmo saco, nem quando pensamos na arte engajada de outrora, nem na sua versão atual. Mas há em comum nessa produção um certo desfrute da situação participativa. Ou seja, a cultura "ongueira" promove-se não apenas pelo seu valor estético intrínseco (como suas qualidades formais e o modo como se insere na história das linguagens), mas pelo seu posicionamento político, sua "visão de mundo".
Assim como as ONGs, a cultura "ongueira" também é do bem, vai aos pobres, gosta do Terceiro Mundo, odeia o Bush e acredita que pode ajudar na "cura" das mazelas sociais.
Essa recuperação conteudística, que em alguns casos pode ser simplesmente regressiva, parece uma contrapartida de uma mutação genética da militância de esquerda -que, com o fiasco socialista, em grande parte migrou para as ONGs. As ações desses setores tendem a ser cada vez mais incrementais e responsáveis -assim como sua arte- num tempo em que a noção de ruptura não apenas está fora de moda, como não encontra financiadores.


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