São Paulo, segunda-feira, 05 de julho de 2004

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Corporativismo e cultura petista

CANDIDO MENDES


A opção histórica que o governo quer assumir na ação afirmativa das quotas tem a consciência do seu risco social

O ministro Tarso Genro já deu o recado decisivo quanto ao que seja promover o acesso imediato e amplo do Brasil marginalizado ao ensino superior. A discussão nacional sobre as quotas franqueáveis ao país de baixo traz a marca da impaciência histórica, que impeliu Lula ao governo e, nele, a desrepresar as potencialidades da nação toda, contida a bem, sempre, dos "mais iguais".
O profundo compromisso com o Estado de Direito que marca o Executivo -que, por exemplo, não quis usar da medida provisória para o implante da novidade- não se remata sem a discussão ampla do que seja a justiça social, a impor ao poder público tratar desigualmente os desiguais, para refazer o equilíbrio das chances de toda uma geração. Talvez se imponha uma emenda constitucional frente à visão clássica da igualdade condizente com o Estado liberal e seus remédios judiciais, para tentar bloquear essa ação afirmativa assumida pelo ministério.
O gesto fundador de Tarso de incentivo ao acesso não se pode pear, entretanto, ao mesmo tempo, por um retrocesso corporativo à interferência da Ordem dos Advogados, ao se imiscuir, no tocante à tramitação e à fiscalização dos cursos jurídicos do país, na seara que é do Conselho Nacional de Educação e ao respeito à autonomia das universidades. Em atenção à entidade, o ministério sofreou, agora, toda a abertura de novos cursos jurídicos, antecipando medida generalizada, e a paralisia, por seis meses, de todo exercício do direito de ensinar em nível superior. O que era manifestação meramente opinativa da Ordem já se transforma, pelo troar do presidente da OAB de São Paulo ("Tendências/Debates", 24/6/04), em clamor por um poder de veto final para qualquer abertura dessas faculdades no país.
Claro, há que reconhecer a tentação do facilitário, que se pode superpor por vezes a esse fenômeno tão ligado hoje à mobilidade social do país que é o dessa expansão silenciosa, determinada do ensino privado entre nós, que tem as maiores taxas de ascensão em todo o mundo. Evidentemente, repetem-se os abusos de maus cursos, mas não há que vingar uma desconfiança de princípio com as faculdades interioranas.
Um governo que instalou a cultura do acesso não pode ignorar, no começo do dinamismo social profundo do país, o papel que cumpriu o bacharel na socialização da nossa cidadania. Foi esse bacharel que formou a República, capacitou civicamente as classes médias e permitiu-lhes disputar o senhorio político do velho regime aos donos da terra e aos militares. Desde então, como agora, é menos de um terço que vai ao exercício concreto da advocacia, tanto quanto essas faculdades serviram, como escola prática da vida política.
São essas tão facilmente execradas faculdades de direito que continuam essa matriz universitária genuína de nossa cultura e que não têm como função social tão-só criar os profissionais das grandes empresas metropolitanas, mas, a mãos-cheias, habilitar as vereanças do interior do Brasil, os líderes das organizações e clubes de serviços. Essa demanda está, a pleno vapor, condizente com a fome de status a que se associou congenitamente a nova mobilidade social do país e a conquista da auto-estima do Brasil que sobe. Todo o regime de quotas terá agora o macroimpacto que pretende, atentando-se a que 80% da fome do ensino superior vai ser atendida por esse educador privado e pela floração dessas faculdades dispersas pelo país.
É com os olhos de ver essa realidade, e a desproporção entre os dois âmbitos de produção, que é com as ferramentas particulares que se vai dar conta da chegada popular ao campus, para além do que possa fazer tão-só a universidade pública.
A opção histórica que o governo quer assumir na ação afirmativa das quotas tem a consciência do seu risco social, que é o de conciliar o ingresso e o efetivo aproveitamento dos beneficiários dessa ação afirmativa. Isso sob pena de que se venha a cristalizar na reprovação do alunado amparado pelo privilégio governamental. Como resolver no correr do curso o que demonstram todas as estatísticas -a distância enorme entre os últimos aprovados com acesso livre e os primeiros protegidos pelas quotas? Absorve-se, normalmente, a desigualdade durante o curso? Exigirão os favorecidos em novo protecionismo do Estado uma adaptação intensiva? Comporão a legião fatal de reprovados, ou, "à brasileira", forçarão para baixo a mediana de aproveitamento?
Por outro lado, o impacto dessa abertura se pode tolher pela ressurreição do pior dos elitismos, nesse último surto corporativo de uma visão malthusiana da nossa melhoria coletiva, própria do país que perdeu as eleições de 2002, ou vê hoje a OAB, em ócio cívico vencido, o período lendário na restauração do Estado de Direito no Brasil. É em nome dele que o exercício da autonomia universitária se insurge contra um surto corporativo temporão, a ferir prerrogativa que a Carta entregou à universidade, como à nação, e a seu povo, a soberania e a cidadania.
Fiscalizar o ensino, sim, e sempre como prevê a regulação democrática de competência do Estado. Mas não se sobrepor, sob esse álibi, ao direito primário de educar, que fez do Brasil a República dos bacharéis, talvez ainda a melhor fiadora hoje do sonho e da paciência que, afinal, ganhou o seu governo, que apenas começa.

Candido Mendes, 76, membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão de Justiça e Paz, é presidente do "Senior Board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco.


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