São Paulo, terça-feira, 05 de outubro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A incrível realidade do Fed

JORGE BOAVENTURA

Já tivemos a oportunidade de assinalar que o famoso Fed, sigla a que a mídia costuma acrescentar "o Banco Central norte-americano", na verdade é uma junta em que têm assento representantes de 12 bancos, todos particulares, mas cujos nomes começam sempre com as palavras "Federal Reserve Bank", com que, maliciosamente, insinua-se um caráter que eles não têm, qual seja, o de representarem instituições do Estado americano. Seguem-se a essas palavras as que denunciam a realidade de serem organizações bancárias particulares, como "of Minneapolis, Minnesota", ou "of Dallas, Texas", ou "of San Francisco, California".
As palavras em causa estão todas em letras pequeníssimas, que os leitores encontrarão em torno das letras maiúsculas que, de "A" a "L", figuram na face das notas de dólar. Como o truque hoje começa a ser denunciado, já existem em circulação novas notas da moeda americana, entretanto em ínfima minoria em relação às que, em quantidade fantástica, continuam a circular no mundo.
Como terá sido possível pôr em prática o violento absurdo a que nos estamos referindo?
Para esclarecê-lo, devemos levar em conta que, dada a grande autonomia de que gozam os Estados norte-americanos, durante muito tempo vários deles emitiam a sua própria moeda, com a confusão e dificuldades que o leitor pode imaginar. Em tal contexto surgiram os bancos -todos particulares, nunca é demasiado repetir-, os quais, com os maliciosos nomes assinalados, propuseram-se a emitir, com exclusividade, a moeda dos EUA, comprometendo-se que, a cada dólar emitido, seria depositada uma certa quantidade de ouro em Forte Knox, este sim integrante do Estado americano.
Passou-se o tempo e, pouco antes do término da Segunda Guerra Mundial, realizou-se a Conferência de Bretton-Woods, na qual ficou assentado que o padrão monetário referencial mundial passava a ser o dólar americano. Veio o final da guerra e o tempo continuou a passar, até que, em 1961, sob o governo de Georges Pompidou, a França solicitou aos EUA que trocassem os dólares que ela possuía pelo ouro a eles correspondente, que se presumia guardado em Forte Knox -e a surpreendente e estarrecedora resposta foi que o citado ouro não estava disponível. Dava-se, assim, um calote em nível planetário -que a mídia não designou assim, mas, gentilmente, como "quebra do padrão-ouro".


O lastro do dólar constitui-se nas sanções econômicas e, se necessário, no emprego brutal e explícito da força


E o dólar, lastreado agora não no ouro, mas no formidável poderio econômico e militar americano, continuou a ser o padrão monetário referencial mundial. Seu lastro, entretanto, constitui-se nas sanções econômicas e, se necessário, no emprego brutal e explícito da força -vide caso Iraque.
Cumpre, a bem da verdade, dizer que a junta em que têm assento os representantes dos acionistas majoritários de 12 bancos particulares é presidida por alguém nomeado pelo governo americano. Como, porém, quem vem exercendo, por cerca de 20 anos, a referida presidência é o sr. Alan Greenspan, tudo indica que, se é duvidosa ainda a vitória do sr. George W. Bush ou a do sr. Kerry, parece que não o é a recondução, mais uma vez, do sr. Greenspan à presidência do Fed.
Mas, para que coisas de tal magnitude aconteçam e a maioria dos povos não se dê conta -referimo-nos ao povão dos diferentes países-, é necessário "opiá-los", confundi-los. E o ópio indispensável e que se tenta impor, inclusive à força, de que a pressão sobre os povos islâmicos é exemplo claro, é a forma degradada e aviltada do ideal democrático, a que chamam democracia, fundada na deliberada confusão entre o conceito de liberdade no plano metafísico, cujo atributo caracterizador é o de não sofrer restrições, e o de liberdade como exercício por parte de seres, como somos todos, portadores de boas e de más tendências.
Liberdade como um ideal que se esgota em si mesmo, é como uma carta sem destinatário e sem conteúdo. Já dizia John Salisbury, no século 13, que não há ideal superior à liberdade, a não ser a virtude. Se é, acrescentava, "que se pode falar de liberdade na ausência de virtude, ou desta na ausência de liberdade". A nobreza do exercício da liberdade existe na medida da nobreza do fim que visa alcançar.
O panorama do mundo degradado e brutal em que estamos vivendo, indagamos ao âmago da consciência do leitor, justifica ou condena a forma prostituída e aviltada de democracia que tentam -"et pour cause"- impor-nos a todos? Não exatamente a todos, pois há uma ínfima minoria que se locupleta, ou julga se locupletar, de tanta injustiça.
Quem é ela, ou melhor, quem a simboliza? Convém pensar, a respeito, no que foi exposto sobre o Fed.

Jorge Boaventura, 80, ensaísta e escritor, é conselheiro do Comando da Escola Superior de Guerra.


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