São Paulo, terça-feira, 05 de novembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Acerto de contas

ARNALDO CARRILHO

A sociedade cansou-se de tantas incertezas e tanto empenho dos nossos social-democratas em provar que "o mercado não erra". Adam Smith, legítimo pai do liberalismo, jamais preconizaria medidas recessivas para uma economia como a nossa.
Durante quase oito anos, tentou-se acabar com o varguismo, conquanto o ditador estadonovista se tenha por idêntico período revelado politicamente mais astuto. Âncoras cambiais levantadas, juros em alturas inalcançáveis, créditos estrangulados, cortes asfixiantes nos gastos não se justificam prolongadamente, em nome da geração de saldos primários. Cada número digitado nas urnas eletrônicas equivaleu a uma porretada na arrogância das opções conducentes ao desastre econômico.
Os sufragados têm agora uma tarefa imensa pela frente e pelos flancos. A área audiovisual, vítima da tática de terra arrasada em suas inglórias batalhas desde 1926, requer tratamento prioritário.
Ela engendra informação, conhecimento, educação, cultura, lazer, arte e não está injustificadamente em mãos brasileiras. Tal significa, em cada meio e suporte de expressão -redes televisivas, telas de cinema, comércio de VHS e DVDs e até videojogos-, a virulência de uma situação colonial que merece correção imediata. Não é possível que, por conformismos oportunistas, cruzemos os braços diante desse escândalo, impedindo a dinâmica da criatividade verdadeiramente autóctone.
O mercado brasileiro de imagens sonorizadas, se no passado consagrava a concorrência imperfeita, prendeu-se às garras monopolizantes das distribuidoras americanas. Elas determinam o que pode o espectador ver, inclusive no caso de produções não-hollywoodianas.
Como exclama o repórter na televisão, "isso é uma vergonha"! Já que nada se fez até agora, urge ao próximo governo cumprir o que prescreve o art. 173, par. 4º, da Constituição. Ali se estatui que ao Estado incumbe reprimir (o termo é este) a dominação dos mercados e a eliminação da concorrência. Define-as, ao lado do aumento arbitrário dos lucros, como abuso do poder econômico (para o que existe remédio na lei ordinária nº 8.884/94).


O mercado brasileiro de imagens sonorizadas prendeu-se às garras monopolizantes das distribuidoras americanas


Deve-se, ao mesmo tempo, chamar às falas as redes televisivas privadas, cujo poder dentro do Estado é incomensurável, solicitando-lhes colaboração. Caso não atendam a esse apelo, adote-se nova legislação concessiva, criando-se para tal um conselho social da radiodifusão, desprovido de vícios corporativos.
Liberdade de expressão exige autonomias conceituais de indivíduos e empresas, engajando-se ao menos em exibir cerca de 60% de produções nacionais, sul-americanas, européias, asiáticas e africanas. Temos de pular a cerca do curral americano, sob pena de continuarmos neste isolamento do resto do planeta.
Ainda no que tange ao setor, do próximo governo requerem-se cuidados especiais com as TVs públicas, em estado de abandono. Necessitam todas de investimentos, aquisição de equipamentos, renovação de programas e treinamento de pessoal, além de influxos tecnológicos aprimorados.
A mecânica das renúncias fiscais, fontes de captação de recursos financeiros incentivados, revela um vício de origem: projetos aprovados pelo Ministério da Cultura ou por secretarias estaduais e municipais de Cultura não atingem o povo; ficam submetidos ao alvedrio das "políticas" de empresas públicas ou privadas, manipuladoras de dinheiros que não lhes pertencem.
Os burocratas lavam as mãos, enquanto operadores culturais, equivocadamente designados de "produtores" -na verdade, atravessadores de negócios-, engalfinham-se para conquistar ou preservar "chasses gardées". Há que pôr cobro a essa perversão, mediante fundos depositados nos tesouros das três órbitas da Federação e administrados pelos órgãos competentes, responsáveis perante a sociedade.
Deve-se, a bem da verdade objetiva, ressaltar mais uma vez que são públicos os recursos incentivados. Não cabe às empresas aplicá-los como querem. O corolário é meridiano: dinheiro público se investe em projetos públicos. Diretamente, sem intermediários. Isso é elementar em políticas públicas.


Arnaldo Carrilho, 65, diplomata, é diretor-presidente da Riofilme S.A.


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Paulo Rabello de Castro: Uma nova unanimidade, crescer

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.