São Paulo, sábado, 5 de dezembro de 1998

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Os atuais presidentes da Câmara e do Senado podem postular a reeleição?

SIM
Interpretação correta das normas

CELSO BASTOS

Constitui um velho ideal do Iluminismo a aplicação mecanicista do Direito, a aceitação de que os significados das palavras são tão evidentes que o intérprete cumpriria sua missão se se dispusesse a ler atentamente as disposições que interpreta. Nada mais nocivo para o Direito do que esse fetichismo, que leva a cabo interpretações rígidas. Na Constituição, nada é suficientemente claro que não demande interpretação.
É que a linguagem normativa não tem significações unívocas. Seus vocábulos comportam mais de um conceito, o que já seria o bastante para justificar a necessidade da interpretação. Há que acrescentar hipóteses em que o texto legal vem inçado de erros de gramática, de lógica ou sintáticos, que obscurecem o conteúdo correto da norma.
Não se pode, pois, reduzir o intérprete a mero autômato. Todo ato interpretativo é um ato de vontade; contém em si uma carga valorativa própria daquele que desenvolveu a atividade interpretativa. Vale lembrar que a interpretação constitucional não deve procurar obter a vontade de uma norma isolada. Formando a Constituição um sistema, suas normas deverão ser consideradas coesas e mutuamente imbricadas. Jamais se poderá tomar alguma isoladamente.
Assim, passemos à análise da questão do direito dos atuais presidentes da Câmara e do Senado de recandidatar-se aos mesmos cargos na sessão legislativa de 1999. Estabelece a Constituição que o Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara e do Senado, e que cada legislatura terá duração de quatro anos (parágrafo único do art. 44). A Carta é, como se nota, explícita, fixando para cada legislatura o prazo certo de quatro anos.
Estabelece, mais adiante, a Carta (parágrafo 4º do art. 57): "Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de dois anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente". Assim, dada posse aos novos membros do Congresso, inicia-se nova votação para eleição das respectivas Mesas. Os eleitos, aqui, contarão com o mandato certo de dois anos. O mandato parlamentar será de quatro anos. No caso dos senadores, o mandato dá direito a um total de oito anos -o que representa, portanto, um período de duas legislaturas.
A leitura afoita do texto permite o entendimento de que a expressão "vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente" estaria a proibir a recondução do parlamentar consecutivamente. A teleologia do parágrafo não vai a esse ponto. Ela se restringe a regular o direito de eleição dentro de uma mesma legislatura, o que fica claro pela parte inicial, que fixa a data de 1º de fevereiro do primeiro ano da legislatura como momento para a eleição das Mesas.
Findo o prazo de dois anos, contados a partir dessa data, é que surge a possibilidade de recondução. E é essa a recondução proibida pelo texto. Findos mais dois anos, encerra-se a legislatura e, consequentemente, a regulação do parágrafo 4º, que nada dispõe que ultrapasse a mesma legislatura; cada início seu equivale a um período inteiramente novo na vida congressual e profissional dos parlamentares.
Até mesmo no Senado tal ocorre; a diferença é que o mandato senatorial dá direito à permanência em duas legislaturas consecutivas. Mas ainda aqui está presente a ruptura representada pela mudança de legislatura; o senador pode ocupar um cargo na Mesa na primeira legislatura do seu mandato e um segundo no exercício da segunda legislatura, ainda que, temporalmente, o desempenho dessas funções possa ser consecutivo. Não é dessa hipótese que o parágrafo 4º cuida. Ele não leva em conta as reconduções quando elas se dão em legislaturas diferentes.
A cláusula proibitória constitucional limita-se a proibir a recondução na mesma legislatura. Um deputado, para iniciar sua segunda legislatura, tem de reeleger-se, o que implica obter um mandato novo. Se se fosse dar tratamento diferente para os reeleitos, estar-se-ia discriminando, sem legitimidade alguma, entre novos e "velhos" deputados. Cada eleição, portanto, gera um novo direito de ocupar cargo na Mesa, por uma legislatura. É o que expressamente dispõe o regimento interno da Câmara (parágrafo 1º do art. 5º): "Não se considera recondução a eleição para o mesmo cargo em legislaturas diferentes, ainda que sucessivas".
O mesmo, no fundo, ocorre com o Senado, com a única diferença de que aqui o mandato já traz o direito de ocupar uma segunda legislatura, e o surgimento desta faz ressurgir seu direito de ser regulado pelo parágrafo 4º, do que advém o direito a novo cargo na Mesa, esteja o senador na primeira parte da legislatura ou na segunda.
Portanto, tanto o deputado federal Michel Temer como o senador Antonio Carlos Magalhães reúnem as condições para recandidatar-se, no início da legislatura de 1999, a seus atuais cargos.


Celso Ribeiro Bastos, 60, advogado constitucionalista, é professor de pós-graduação de direito constitucional e direito das relações econômicas internacionais da PUC-SP e diretor-geral do IBDC (Instituto Brasileiro de Direito Constitucional).




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