São Paulo, terça-feira, 06 de janeiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A escola e o profissional do futuro

ROBERTO LEAL LOBO E SILVA FILHO

No final dos anos 90, a Unesco promoveu um grande encontro internacional, envolvendo educadores de todos os continentes, para discutir os problemas da educação no mundo e projetar o que deveriam ser as políticas educacionais visando compatibilizá-las com o perfil que seria exigido dos profissionais do início do século 21.
O profissional do novo século, sem dúvida, deverá defrontar-se com um mundo em rápida mutação, com comunicações quase instantâneas para qualquer parte do mundo, mercados globalizados, imensos sistemas de informação, crise de empregos na maioria dos setores tradicionais e necessidade de atualização profissional e cultural constante, entre outras coisas.
Os especialistas propuseram, diante do desafio de definir esse perfil, algumas características que não poderiam ser ignoradas na formação do profissional do futuro: ser flexível, capaz e disposto a contribuir para a inovação e ser criativo; ser capaz de lidar com incertezas, estar interessado e ser capaz de aprender ao longo da vida; ter adquirido sensibilidade social e aptidões para a comunicação; ser capaz de trabalhar em equipe, desejar assumir responsabilidades, tornar-se empreendedor; preparar-se para o mundo do trabalho internacionalizado por meio do conhecimento de diferentes culturas e, finalmente, ser versátil em aptidões multidisciplinares e ter noções de áreas do conhecimento que formam a base de várias habilidades profissionais, como tecnologias e informática.
Não é um cardápio educacional fácil de implantar em nenhum país.


O puro abandono da postura intelectual séria tem cedido lugar à postura opinativa sem fundamento


Alguns desses talentos tornam-se muito difíceis de desenvolver por meio das formas de lecionar as disciplinas tradicionais. O caso mais típico é o do ensino de línguas. As poucas horas por semana ministradas em algumas de nossas escolas, para turmas de 30 ou mais alunos, não se têm mostrado capazes de ensinar quase nada, simplesmente porque não é assim que se aprende uma língua.
A melhor maneira de dominá-la é vivenciá-la na prática e depender dela para vencer algum obstáculo concreto. Quando se precisa da língua para sobreviver, aprende-se em muito pouco tempo e melhor do que tendo por oito anos duas horas de aula por semana.
Imaginemos, então, aulas de empreendedorismo! Como se ensina isso? Colocando uma disciplina de duas horas no currículo? Quando, em que ano de formação? Que disciplina devemos retirar para que essa atividade entre nas escolas que trabalham com o aluno em período parcial? Será que adianta, já que os próprios professores, em sua maioria, não são empreendedores nem passaram por experiências empreendedoras?
O desafio do Brasil é ainda maior pela pouca experiência que temos em programas educacionais bem-sucedidos. As competições e os testes internacionais sempre nos colocam em posição altamente desvantajosa em relação ao resto do mundo. Temos dificuldade de fazer com que nosso estudante aprenda a pensar por si mesmo, sem tentar, a cada desafio, lembrar-se do que constava de uma apostilha que memorizou, mas não metabolizou, porque não foi desafiado a entender, a cada passo, as diferentes facetas do problema e a testar sua própria compreensão. Ensina-se muito em extensão e pouco em profundidade.
Embora correndo o risco de incompreensões, por apresentar o tema nesse espaço reduzido, afirmo que a visão da pós-modernidade ingênua, que defende que a verdade não existe, sendo a verdade de cada um tão boa quando as dos outros "porque tudo é uma questão de opinião", é um fator que não estimula o espírito científico da juventude.
De fato, nunca se deve pretender chegar a uma verdade final e definitiva -que cega a visão histórica do conhecimento e despreza a postura dos verdadeiros sábios de querer sempre aprender mais-, mas o puro abandono da postura intelectual séria tem cedido lugar à postura opinativa sem fundamento. Para que estudar se toda opinião vale a mesma coisa, tendo ou não sido emitida por um estudioso do tema?
Uma outra deficiência é que a formação mais ampla, necessária à compreensão das diferentes culturas e das tecnologias modernas, vem sendo dificultada, no Brasil, pela idéia de que cultura se resume à cultura humanística -à qual se soma, no máximo, a preocupação com o ambiente. A ciência não é tratada como uma componente importante da cultura atual, mas como um saber frio e sem compromisso social.
A falta da formação científica, além de ser um forte "handicap" cultural para nossos estudantes, vem prejudicando os profissionais de todas as áreas, que se sentem incapazes de ler um gráfico, de entender uma relação numérica, de gerar um modelo quantitativo -que não são habilidades úteis somente na matemática, mas essenciais, por exemplo, no planejamento de todas as áreas, inclusive a familiar.
Finalmente, mas não menos importante, a permissividade com a falta de disciplina e de respeito pelos mestres, que se generalizou no mundo, mas é ainda mais acentuada em nosso país, agrega ao ceticismo da nova geração em relação ao conhecimento o ceticismo pelos seres que conhecem, em que se incluem seus mestres.
Não sintetizo uma postura pessimista sobre o futuro, mas tento fazer um alerta que muitos não desconhecem, mas se calam diante do corporativismo e da defesa ideológico-partidária que atrasaram o Brasil na educação em geral.
O desafio que o nosso país enfrenta para se desenvolver passa, necessariamente, pela educação, em que teremos de rever, mais do que nossos currículos, nossas formas de ensinar, mais do que ensinar, nossas formas de pensar e, mais do que pensar, nossas formas de agir.

Roberto Leal Lobo e Silva Filho, 63, doutor em física pela Universidade de Purdue (EUA), é diretor da Lobo & Associados Consultoria e Participações. Foi reitor da USP.


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