São Paulo, quarta-feira, 06 de fevereiro de 2008

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Por que assinamos a nota de repúdio

SUYANNA LINHALES BARKER e ESTHER MARIA DE MAGALHÃES ARANTES


A decisão sobre a pertinência ética de pesquisas ainda é assunto de comitês, e não de um debate amplo e público como o que buscamos iniciar


EM 26/11/07 , a Folha publicou uma reportagem sobre um estudo para investigar a base biológica da violência, causando imensa perplexidade em professores universitários, profissionais das áreas humanas e sociais, assim como entidades não-governamentais e movimentos sociais, que, em resposta, redigiram uma nota de repúdio, que circulou pela internet e foi posteriormente publicada pela Folha. Nós, da Comissão Regional de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia-RJ contribuímos com a redação (coletiva) da nota e a assinamos. A nota circulou acompanhada de um texto esclarecendo que não se tratava de um repúdio às universidades nem a seus professores, funcionários e alunos. Tampouco contra a pesquisa, em geral, sendo seu objetivo suscitar o debate -o que é salutar numa democracia e deve ser um nosso exercício cotidiano.
Na seqüência, a nota é recebida por alguns como sendo precipitada, inclusive em editorial da Folha, uma vez que o projeto nem sequer havia sido submetido a um comitê de ética em pesquisa. Entretanto, informação contrária fora dada pelo jornal, em reportagem anterior. Acaso não era previsível que uma pesquisa que se dispõe a mapear o cérebro de supostos "adolescentes homicidas" para verificar como se produz uma suposta "mente criminosa" suscitaria indagações de diversas ordens? Não era igualmente previsível que a afirmação abaixo, embora sob a capa de pretensa unanimidade sobre o fazer do psicólogo, motivasse protesto por parte destes profissionais? Vejamos o trecho: "O que funciona é dizer ao paciente: "Vou ficar no teu pé, tu tens que vir na consulta [do psicólogo] e, se tu aprontar, nós vamos estar te olhando", diz o cientista" (caderno Ciência, 26/11).
A nota que assinamos repudia, não veta -a decisão sobre a pertinência ética de pesquisas, por sinal, ainda é assunto de comitês, e não de um debate amplo e público como o que procuramos iniciar. Mas, certamente, lamentamos a iniciativa deste projeto, por reforçar, mediante a escolha dos adolescentes a serem pesquisados, as discriminações e estereótipos que já marcam certos sujeitos, como fica claro quando se os chama, conforme a reportagem, de "homicidas", deixando subentendido tratar-se de "cérebros de homicidas". Todos sabemos que os adolescentes que se encontram em unidades de privação de liberdade fazem parte das camadas mais pobres da sociedade, condição esta demonstrada em inúmeras pesquisas. Nesse sentido, cumpre lembrar que nenhuma pesquisa se limita a seus resultados: qualquer pergunta -e pesquisas formulam perguntas- pressupõe uma afirmação. E a afirmação da pesquisa em pauta, ao menos segundo o relato (até onde sabemos não desmentido) da reportagem, admite que existam cérebros "criminosos" em oposição a "não-criminosos", ignorando a rede de poderes que se articula com tal suposição (mesmo que pretenda investigá-la cientificamente).
A luta na Constituinte de 1987 pelos direitos da criança e do adolescente foi para que nunca mais houvesse, no Brasil, duas infâncias: a "criança e o adolescente" e o "menor". Assim, quando falamos de nossa "tristeza" quanto ao projeto em pauta, falamos da tristeza de perceber que mesmo na universidade é possível fazer pesquisa sem a devida reflexão sobre as condições e efeitos políticos da mesma, sobre as implicações de seus temas e métodos, sobre o papel de cada ator e acadêmico na construção do que, com demasiada facilidade, se diz ser "o real". Pois, no nosso entendimento, este não é algo a ser constatado ou desvelado, mas uma construção cotidiana forjada em meio a lutas e conflitos. E isso inclusive quando se trata de tema aparentemente tão concreto, factual, objetivo, científico e da exclusiva competência de especialistas como um "cérebro" submetido a "mapeamento".
Assinamos a nota, portanto, não como preconceituosos censores contrários a uma inquestionável razão, mas enquanto pessoas, entidades e movimentos que não pretendem se calar diante de uma certa racionalidade que nos quer situar, a todos, como "menores" em face de sua pretensa validade indiscutível.


SUYANNA LINHALES BARKER , 40, psicóloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), é coordenadora da Comissão Regional de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro.
ESTHER MARIA DE MAGALHÃES ARANTES , 58, professora do Departamento de Psicologia da PUC-Rio e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Uerj, é membro colaborador da CRDH-CRPRJ.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


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