São Paulo, Sábado, 06 de Março de 1999
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Fósforo queimado

CARLOS HEITOR CONY


Rio de Janeiro - A moça perguntou se ele queria só brincar. Ele não entendeu. Brincar como? Jogar batalha naval, pular amarelinha, fazer cabaninha no quintal? Estava muito antigo para isso. Além do mais, vencida a gloriosa etapa da aproximação, ela estava em seus braços.
No tempo dele, brincar era uma coisa. Ter uma mulher enrolada em seu corpo, outra.
Fez esforço para se adaptar à nova ordem, a moça era de uma geração distante, de um vocabulário longínquo. Brincar, para ela, podia ser uma porção de coisas, inclusive ir para a cama com um homem.
Daí a pergunta. Ela queria botar tudo em pratos limpos, embora os pratos continuassem sujos, com os restos de um estrogonofe que era a peça de resistência da hotelaria dedicada àquele tipo de brincadeira.
Ainda que ele vivesse 200 anos a mais (não precisava de tanto, já chegara a uma idade suficiente para ter juízo), não saberia a diferença entre brincar na cama com a moça e amá-la. Afinal, o amor é um fósforo que se acende, brilha, pode botar fogo na casa, na cidade, no mundo, mas geralmente acende um cigarro e logo se apaga, tornando-se um fósforo queimado.
Teve vontade de explicar a teoria do fósforo queimado que bolara naquele momento, mas sentiu preguiça. O mais fácil, o mais urgente era dizer que não, o negócio era seriíssimo, ""não vê como estou? Já não aguento mais!"
Como se adivinhasse o pensamento dele, a moça declarou que não queria se queimar, ser jogada fora mais tarde, como um fósforo queimado.
Muita coincidência. Ele poderia ter tentado uma brilhante carreira de telepata, exibindo-se no programa do Faustão e do Ratinho. Transmitiria pensamentos saudáveis aos necessitados, aos que têm sede e fome de justiça e amor.
Era tarde também para isso. No segundo encontro, ele levou um bloquinho de batalha naval, acrescentando-o a seu equipamento básico: ""Seja o que Deus e ela quiserem!".


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