São Paulo, quinta-feira, 06 de maio de 2004

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OTAVIO FRIAS FILHO

Ex e atual

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso está numa posição confortável. Parece que não lhe faltam convites para conferências bem remuneradas. Manietado pelo cargo que ocupou e pelas ambições de retomá-lo, FHC não pode se manifestar na antiga condição de sociólogo inventivo, tendo de se ater ao senso comum do qual não convém a um político se afastar. Mesmo assim, mantém-se em circulação e com visibilidade.
Levado, ao que tudo indica, pelo receio de ser suplantado por caciques tucanos que hoje exercem poder estadual, FHC deixou no mês passado a posição de relativo recolhimento em que se confinava a fim de mostrar que continua no jogo. O normal seria retomar, agora, o perfil mais discreto, com o intuito de se preservar para emergir novamente em momentos críticos que virão pela frente.
Os políticos profissionais se dividem entre os que só atuam por meio da ação (Lacerda e Collor, por exemplo) e os que o fazem também por meio da omissão (Getúlio e Tancredo, por exemplo). Correspondem, na gíria do futebol, aos que só jogam com a bola e aos que também sabem jogar sem bola. FHC é um político deste segundo tipo. A esse traço de estilo deve-se acrescentar que alguém muito importante trabalha dia e noite para ele.
Esse alguém é o presidente Lula, a quem os tucanos deveriam erguer uma estátua de gratidão. Ao manter, nas políticas essenciais de governo, a mesma orientação do governo tucano, Lula só confirma a sensação crescente de que Fernando Henrique estava, desde o início, correto: não existia alternativa ao modelo em vigor. Da mesma forma involuntária pela qual a ditadura conferiu legitimidade moral à esquerda, Lula a está dilapidando.
Outra contribuição inadvertida do atual chefe de governo é sua própria maneira de ser. A cada vez que Lula se mostra como é -desabrido, rudimentar, desorientado-, ficam reforçadas, por contraste, as características de discernimento intelectual e elegância cosmopolita que estão associadas, não sem motivo, à imagem popular do ex-presidente. Tudo muito confortável.
Começa a ficar mais claro, a propósito, o que houve com Lula. Ele achava que mudar dependia da boa vontade do governante. Como católico que é (essa a sua "ideologia", no fundo), imaginava que pessoas bem intencionadas, como ele próprio, fariam o "bem" uma vez no poder. Não sabia que a latitude de decisão é muito estreita; a administração pública, muito complexa; as estruturas, mais poderosas que as pessoas.
É muito cedo, evidentemente, para saber se FHC teria chances de disputar com êxito a próxima eleição contra Lula. Seria preciso que o atual governo chegasse a 2006 com uma imagem tão ruim que fizesse despertar um novo "queremismo" no eleitorado. Mas não tão ruim a ponto de estimular vocações messiânicas que, numa situação de colapso, poderiam crescer.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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