São Paulo, quinta-feira, 06 de maio de 2004

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TENDÊNCIAS E DEBATES

Um terço já se foi

JORGE BORNHAUSEN

De hoje a 31 de dezembro de 2006 -dia do fim de mandato do presidente Lula- serão apenas 970 dias. O primeiro terço já foi ultrapassado melancolicamente. Foram 491 dias de apatia frenética, se é compreensível associar dois termos tão conflitantes.


É impressionante como foi possível ao governo Lula desperdiçar perdulariamente todas as graças que lhe foram dadas


Mas foi assim mesmo. O governo Lula não produziu nada e manteve-se incapaz de resolver os grandes problemas nacionais (os mesmos que dizia serem os mais urgentes), mas fez muita marola, certamente agravando-os. Foi apático para cumprir sua missão constitucional de governar e realizar suas promessas eleitorais; e frenético, falastrão e até agressivo para garantir a impunidade da corrupção, abafando a qualquer custo o caso Waldomiro Diniz.
É impressionante como foi possível ao governo Lula desperdiçar perdulariamente todas as graças que lhe foram dadas pela consagradora e limpa eleição de outubro de 2002. O povo deu-lhe tudo. Primeiro, a confiança do voto -52.793.364 votos, 61,27% dos eleitores que votaram no segundo turno em 27 de outubro de 2002. Depois, a quase unânime -oito em cada dez brasileiros, como indicavam as pesquisas em janeiro de 2003- esperança do povo de que se cumprissem as quiméricas promessas eleitorais, que começaram com os 10 milhões de empregos e com o estabelecimento de padrões éticos inéditos. Uma esperança que se manteve, com quedas pequenas, durante mais de um ano, até o fatídico 13 de fevereiro de 2004, quando a revelação do caso Waldomiro Diniz obrigou a sociedade a abrir os olhos e cair na realidade.
Era tudo falso. Foi um sonho. Acabou-se. E chegou ao fim mais uma etapa do trepidante e penoso avanço democrático brasileiro. Foi o capítulo do "carisma", quando se trocam 12 por meia dúzia, como se a forma mudasse a substância das coisas; quando se esquece o que se deseja comprar e compra-se a lábia do camelô; quando se aposta numa alegre aventura e se esquece que no outro dia há contas a pagar, o horário do trabalho, a escola das crianças, o médico da mulher, o cuidado com os velhos...
Assim, quantos votos Lula obteve com a nova maquiagem? Ou com os clips e truques do marqueteiro Duda? Com as grávidas de branco, pagas a cachê como nos anúncios comerciais, muitas delas com falsas barrigas de enchimento? Com a impressionante reunião de sábios e especialistas que sugeriram a antevisão de um ministério de gênios -que acabou formado por 36 personagens nada extraordinários, dos quais a maioria políticos derrotados em eleições estaduais?
Quantos outros votos não foram obtidos com promessas jogadas ao vento, como o uso e abuso da palavra "ética", de tal forma assumida, como se fosse patente petista, que os demais candidatos eram naturalmente não-éticos?
Esses artifícios, depois de Lula, não valerão mais, porque o eleitorado já viu que truque não vale e o tal carisma é também truque. Outros antes passaram pelo que não eram e suas substituições não deram tempo para refletir, pois se tornaram excepcionalidades. Lula, porém, foi quem mais se beneficiou do tal truque do carisma, e já deixa como maior lição aos eleitores que o jogo eleitoral deve ser jogado de outra maneira, com idéias e programas não inventados por marqueteiros (como essa tal farmácia popular que o mesmo marqueteiro vendeu, revendeu e requentou para campanhas eleitorais de candidatos tão diversos como Arrais, Maluf e Lula), mas apresentados com seriedade e defendidos sem fantasias.
Esses 491 dias perdidos do primeiro terço do governo Lula -tomara, sinceramente, que mude e melhore nos 970 dias que ainda lhe restam- carregam uma carga de decepção tão forte que, tenho certeza, influirá profundamente no futuro da política brasileira.
Não espero, por exemplo, que se reduza sua maioria parlamentar. Muito pelo contrário, pois a perda de autoridade moral e da densidade de apoio popular tornará o governo cada vez mais disposto a negociar apoios e lotear a administração e suas verbas.
Mas as ruas, onde estão os cidadãos comuns, que já estão se manifestando nas pesquisas, serão diferentes em 2006. O povo, como diz o ditado popular, "aprendeu sem se ensinar". O erro do PT foi imaginar o contrário. Acreditou que o povo lhe havia assinado um cheque em branco e achou que poderia desperdiçar o tempo de governo -gerou, entre outros desacertos, o crescimento negativo, um novo milhão de desempregados e o abril vermelho.
Agora, terá apenas 970 dias para concertar os erros e fazer o que deveria ter sido feito. Nova chance, não creio que o Lula e o seu partido a terão.

Jorge Konder Bornhausen, 66, é senador pelo PFL-SC e presidente nacional do partido. Foi governador de Santa Catarina (1979-82) e ministro da Educação (governo Sarney) e da Secretaria de Governo da Presidência da República (governo Collor).


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