São Paulo, quinta-feira, 06 de maio de 2004

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TENDÊNCIAS E DEBATES

O patrimônio invisível

NADIA SOMEKH

Tenho muito orgulho da minha formação de arquiteta e urbanista. Meus eméritos professores na FAU-USP, desde a graduação até o doutorado, não só me trouxeram a alegria do conhecimento -e não foram poucos- , como também muitos deles se tornaram meus amigos e colegas na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie.
Surpreendeu-me, no entanto, o artigo do professor Carlos Lemos, a quem muito admiro e com quem muito aprendi, publicado no dia 16 de março ("O patrimônio arquitetônico paulistano", pág. A3), criticando, de forma injusta, as estruturas municipais referentes à preservação do patrimônio arquitetônico paulistano, do qual há bem pouco tempo era participante.


Estamos numa cidade capitalista, portanto "ter pruridos" ao falar de valorização imobiliária é falta de senso


Em primeiro lugar, está ultrapassado caracterizar o mercado imobiliário atual como sendo uma "fúria demolitória". Isso ocorreu no início dos anos 70, com a ação do BNH, que financiava produção e consumo e que representou um momento ímpar no crescimento vertical de São Paulo, em suas áreas mais centrais. Naquele momento, sim, houve uma fúria demolitória que atingiu grande parte da história de São Paulo. Mas depois, com a produção de outras centralidades, houve um deslocamento dos interesses para novas fronteiras de valorização nem sempre ocupadas.
O DPH (Departamento de Patrimônio Histórico) e o Concresp (Conselho de Proteção do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo) foram criados em 1975 e 1986, respectivamente, como resposta a essa "fúria destruidora" dos anos 70. Os instrumentos de preservação até então limitavam-se aos tombamentos em âmbito federal e estadual.
As Z8-200, de 1975, que o professor Lemos ajudou a construir desde 1974, produzindo pela primeira vez uma listagem com imóveis correspondendo a períodos da formação socioeconômica de nossa cidade, não podem ser consideradas os melhores instrumentos de preservação. Defendemos uma política de preservação, sim, porém mais ampla, que supere a mera listagem de bens culturais.
Fiquei bastante penalizada ao perceber, por exemplo, a descaracterização da Vila Maria Zélia, quando fui assistir a uma peça de teatro, no início deste ano. Havia dez anos não ia até lá. Para quem não sabe, a Vila Maria Zélia, construída no começo do século 20 pelas Indústrias Street para seus trabalhadores, era um dos ícones do processo de urbanização de São Paulo -sempre mostrado a professores de arquitetura e urbanismo em suas visitas pela cidade.
Só menciono a Vila Maria Zélia porque o distanciamento me fez sentir o choque da transformação e ter a convicção de que é necessária uma política de preservação mais efetiva, que busque atividades e usos para os edifícios listados e tombados e que supere o modelo "centro cultural", porque não é possível ocupar todos os bens tombados com esse uso. E já estamos caminhando nesse sentido, buscando estabelecer, junto aos organismos de patrimônio, uma política de preservação que seja inclusiva e que resgate a valorização imobiliária e afetiva da nossa história, consubstanciada não só nos seus edifícios, mas em sua memória.
Isso porque estamos numa cidade capitalista, portanto "ter pruridos" ao falar de valorização imobiliária é falta de senso. A cidade capitalista é, em sua essência, excludente. Os investimentos só não serão portadores de exclusão se forem regulados pelo poder público numa perspectiva democrática e participativa, como a que estamos implementando na administração da prefeita Marta Suplicy. O Fórum Ação Centro, programa de reabilitação da área central, que deverá ter sua primeira reunião em maio, é um dos exemplos disso.
Além do mais, o Plano Diretor Estratégico aprovado e o estabelecimento das Zonas Especiais de Preservação Cultural (Zepecs) constituem movimentos em direção a essa política de preservação que desejamos e que não se limita a meras listagens inócuas centradas nos bairros dos formadores de opinião. Existe um patrimônio que deve ser valorizado com um olhar diferenciado na administração municipal atual e que está engendrando uma política mais ampla de preservação. É um patrimônio aparentemente invisível, mas só para aqueles que não se propõem a ver.
Também não é possível falar em alheamento da Secretaria Municipal de Cultura e do DPH. Não há dúvidas a respeito da preocupação da secretaria em ampliar o debate sobre o patrimônio. Basta citarmos a reativação do Conselho Municipal de Cultura e a realização, programada ainda para este semestre, da Conferência Municipal de Cultura, que prevê uma pré-conferência específica para o tema patrimônio.
Vale lembrar ainda que foi iniciativa da própria Secretaria Municipal de Cultura realizar a Expedição São Paulo, que buscou elementos para traçar um retrato cultural da cidade hoje. Durante essa expedição, um dos eventos dos 450 anos de São Paulo, 60 profissionais pesquisaram o cotidiano urbano nos eixos norte-sul e leste-oeste, construindo material riquíssimo que fará parte do Museu da Cidade, a ser inaugurado no antigo Palácio das Indústrias.
É isso que a população de São Paulo, que conta, sim, para a nossa administração, irá ver e comemorar na festa dos 500 anos.

Nadia Somekh, 51, professora de Urbanismo da Universidade Mackenzie, é presidente da Emurb (Empresa Municipal de Urbanização).


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