São Paulo, quinta-feira, 06 de junho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Medicina e humanismo

GIOVANNI GUIDO CERRI

A trajetória da medicina em nosso país teve fatos marcantes ao longo das últimas décadas. A incorporação de novas tecnologias pelos centros de excelência e conquistas relevantes em diagnósticos, procedimentos terapêuticos e pesquisas foram, com frequência, notícia. Em contrapartida continua evidente o difícil acesso das populações menos favorecidas à modernidade da medicina, quase como um reflexo das diferenças sociais e da injusta distribuição de renda no Brasil.
Ao médico, como peça-chave nas atenções de saúde, cabe não só clamar por mudanças e melhorias do sistema de saúde, mas também agir no seu dia-a-dia com o devido envolvimento técnico, científico e emocional em relação aos seus pacientes. Nessas horas, o homem faz a diferença!
Nesta mesma data, há um ano, morria o prof. Daher Cutait, que deixou grande legado à medicina brasileira. Cirurgião respeitado por seus pares e pacientes, teve uma profícua vida acadêmica como professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, deixando relevantes contribuições científicas, que tiveram repercussão internacional. Foi também, ao lado de Violeta Jafet, o grande responsável pelo desenvolvimento de um dos mais importantes centros médicos de excelência do país, o Hospital Sírio Libanês, hoje um patrimônio de São Paulo.
O prof. Cutait se formou em 1939 e completou seus estudos na Columbia University e no Michigan University Hospital, nos Estados Unidos, onde se especializou em cirurgia colorretal. Ao longo de sua vida, publicou três livros e mais de 120 trabalhos científicos, realizou centenas de palestras em congressos e cursos nacionais e internacionais e formou centenas de jovens cirurgiões na sua especialidade. Ativo membro das sociedades médicas, presidiu o Colégio Brasileiro de Cirurgiões, a Federação Latino-Americana de Cirurgia, a Associação Latino-Americana de Coloproctologia, a International Society of University Colon and Rectal Surgeons, entre outras.
O mais importante de Daher Cutait foi, contudo, seu legado pessoal. Em toda sua vida, atendia ricos e pobres com a mesma disponibilidade e afabilidade, características marcantes de sua personalidade. Utilizou seus conhecimentos e sua habilidade cirúrgica beneficiando seus pacientes sem considerar suas condições sociais ou econômicas, tendo nos deixado a mensagem de que todos os pacientes devem ser tratados da mesma forma. Com humanismo e respeito ao doente, sempre demonstrava que o que importa é o resultado. Pode-se viajar de primeira classe ou de econômica, mas todos devem chegar ao mesmo destino. O que o prof. Cutait queria é que todos os seus pacientes tivessem o melhor tratamento possível.


Nesta mesma data, há um ano, morria o prof. Daher Cutait, que deixou grande legado à medicina brasileira


É fundamental que os jovens médicos, que hoje proliferam advindos de faculdades de medicina nem sempre recomendáveis, resgatem valores morais, éticos e humanísticos da medicina que antigos professores tinham em suas almas e nos legaram. A relação médico-paciente continua sendo central na prática médica -em que o paciente, muitas vezes fragilizado pela doença, sente-se incompreendido pelo seu médico, não o vendo como um real parceiro para a cura de seus males.
Nas últimas décadas, as escolas médicas têm mostrado entusiasmo com a tecnologia, os conhecimentos acumulados pela ciência, as máquinas e os medicamentos, esquecendo-se de realçar para seus alunos a importância da formação humanística que deve diferenciar o médico de um técnico.
Os exemplos do passado nos mostram claramente que medicina não é apenas tecnologia e que a relação médico-paciente não poderá nunca ser globalizada, automatizada ou transformada em cifrões. Sua base continua sendo a troca de emoções e de sentimentos, com dedicação, algo que o prof. Daher Cutait sabia muito bem, há mais de 60 anos, quando se formou na nossa Faculdade de Medicina da USP.


Giovanni Guido Cerri, 48, professor titular e chefe do Departamento de Radiologia da Faculdade de Medicina da USP, é diretor clínico do Hospital das Clínicas e membro do Conselho Médico do Hospital Sírio Libanês.



Texto Anterior:
TENDÊNCIAS/DEBATES
Cesar Maia: A dialética do segundo turno

Próximo Texto:
Painel do Leitor

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.