São Paulo, terça-feira, 06 de agosto de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Quando o passado constrói o futuro

JOÃO CARLOS MARTINS

Se viver é passar por alegrias e tristezas, vitórias e derrotas, paz e angústia, reconhecimento e isolamento, mas sempre respeitando o passado e acreditando no futuro, posso dizer que vivi intensamente. Nestes dois últimos meses, na Alemanha e na China, enriqueci muito minha avaliação de como um país sem memória não tem futuro.
Tive a honra de presidir o júri do Concurso Internacional Johann Sebastian Bach, para pianistas de até 35 anos, em Leipzig, na Alemanha, cidade adotada pelo mestre cantor e que hoje cada vez mais procura demonstrar para o mundo a importância desse gênio.
Evidentemente que, ao receber o convite, senti um reconhecimento aliado a uma satisfação imensa, pois essa verdadeira "Copa do Mundo" para intérpretes de Bach, que se realiza a cada quatro anos, desde 1950, e reúne jovens do mundo inteiro, que durante 15 dias tocam para um júri de especialistas internacionais, atrai a atenção de toda a mídia musical européia, americana e japonesa. Senti-me, ao lado dos representantes dos outros países, recompensado pelo trabalho de uma vida inteira dedicada à obra de Bach.
Mais de cem candidatos se inscreveram. O vencedor foi um jovem fantástico da Alemanha, seguido por um chinês e um americano, que dividiram o segundo lugar, uma japonesa em quarto, outro alemão em quinto e uma russa em sexto lugar. O Brasil teve uma candidata muito talentosa, que iniciou muitíssimo bem a competição, mas, por ser a primeira vez que participava de um concurso internacional, infelizmente não aguentou a pressão de tocar Bach em Leipzig. No entanto tem talento suficiente para futuras competições.
Nessas duas semanas pude observar o respeito e a reverência que essa cidade, principalmente através do "Bach Archiv", presta a seu mestre, assim como a Mendelssohn, Schumann, Brahms, Goethe e outros que lá viveram e são a razão para que possamos acreditar que Deus existe.
Paralelamente, depois da queda do Muro de Berlim, eles têm sido os maiores geradores de divisas para a cidade, já que turistas chegam a Leipzig para entrar na igreja de S. Thomas, onde Bach todos os domingos apresentava uma nova cantata, para jantar no restaurante onde Goethe se inspirou para escrever Fausto, para se sentar no bar que Schumann e Brahms frequentavam no verão e visitar a casa onde Mendelssohn viveu.
Quando percorri a S. Thomas, quando o "Bach Archiv" retirou dos cofres de um banco alguns originais de Bach para que eu pudesse segurar com minhas mãos ou quando toquei para um público seleto a "Chaconne" (transcrita por Brahms para a mão esquerda), ao lado da casa de Schumann, pela primeira vez tive a sensação do significado de uma viagem ao passado. Três dias após o encerramento da competição em Leipzig, iniciei minha turnê pela China, tocando obras para a mão esquerda.
Outro mundo, outra filosofia de vida, outros problemas e outras soluções, mas com algo em comum -a construção de um futuro melhor, preservando os bens culturais e respeitando a memória daqueles que mantiveram a unidade física e espiritual de seus povos.


Nestes dois últimos meses, enriqueci muito minha avaliação de como um país sem memória não tem futuro


Em Pequim, onde toquei o "Concerto para Mão Esquerda" de Ravel, senti uma enorme integração entre o piano e a orquestra. Nas outras cidades, tanto quanto na capital, senti um progresso econômico, social e cultural assustador.
No Conservatório Central de Pequim, dei uma "master class" com a presença de jovens e professores ávidos para trocarem informações. Nos teatros, instrumentos excepcionais, acústica perfeita e um público jovem marcando presença.
Na China de hoje preserva-se o passado indiscriminadamente. Dezenas de milhares de chineses todos os dias vão à Cidade Proibida e à Grande Muralha para reverenciar as dinastias imperiais que preservaram a unidade chinesa; no túmulo de Mao, a cena se repete em filas quilométricas.
Impressiona nessa transformação a convivência de milhões de carros com um número bem maior de bicicletas, em paz e harmonia. Em cada esquina, três ou quatro edifícios enormes são construídos. De manhã à noite, todos trabalhando para construir uma nação.
Na última cidade da turnê, Shenzhen, disseram-me que a mesma, 20 anos atrás, era uma vila de pescadores com não mais de 20 mil habitantes. Hoje parece uma Chicago ou Dallas, com cerca de 5 milhões de habitantes.
No conservatório local, professores trouxeram alunos de 10 a 12 anos que, tecnicamente, executam grandes obras com uma desenvoltura impressionante. Nessa altura aproveitei para dizer que nós, latinos, precisamos colocar a razão a serviço da emoção, e eles, chineses, a emoção a serviço da razão. Na China trata-se um artista com a mesma reverência que o ocidente o fazia na primeira metade do século 20.
Voltando à questão social, meu amigo Roberto Campos dizia que, no comunismo, as intenções são melhores que os resultados, e no capitalismo os resultados são melhores que as intenções. Acrescento que na China, hoje, os resultados são tão bons quanto as intenções.
O grupo do instituto governamental de cultura (China Performing Arts Agency) que nos acompanhou elogiou o trabalho brasileiro de combate à Aids. No âmbito da iniciativa privada, o intercâmbio que está sendo realizado e que inclui a exposição "Brasil 500 Anos" também foi muito elogiado.
No último dia, contei para o grupo que nos acompanhava uma piada sobre o Conde Drácula. O jovem Hu Song, nosso intérprete oficial, perguntou-me: "Quem é o Conde Drácula?". Respondi-lhe que era uma figura sinistra que, de certa forma, representa o próprio diabo; ao que ele respondeu: "Não entendi". Perguntei-lhe se sabia quem era Deus e ele me respondeu que, apesar de não ir aos templos, sabia quem era Deus e O respeitava muito. Com tranquilidade eu lhe disse que o diabo seria o oposto de Deus"; ao que Hu Song concluiu: "Mas e isso existe?"
Será essa a diferença entre a China e o mundo em que vivemos?


João Carlos Martins, 62, é pianista.



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