São Paulo, sábado, 07 de fevereiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O trabalho escravo persistirá no país?

SIM

Cidadania zero: heranças e legados

FLÁVIO GOMES

O episódio do assassinato dos fiscais que investigavam a utilização de trabalhadores escravizados -entre indignação e perplexidade- nos remete para uma reflexão mais profunda sobre as experiências de trabalho compulsório e a história do trabalho no Brasil. Mergulhamos num país e em sua estrutura socioeconômica. Um passado -que alguns insistem em desenhar distante- faz-se cada vez mais presente.
Aqui, como no restante das áreas coloniais das Américas, o trabalho compulsório constituiu-se num fato social, sequer questionado no início, para o desdobramento da colonização e a produção de riquezas. Considerando o fim da escravidão indígena decretado em meados do século 18 (ainda que essa liberdade fosse uma ficção, uma vez que fazendeiros em frentes de "civilização" e de expansão econômica do século 19 tinham o "direito" de recrutar indígenas) e a Lei Áurea de 1888, temos três quartos da nossa história com utilização de trabalho escravo.
Mas, afinal, qual o passado que se faz hoje presente com as denúncias de trabalho escravo? Resguardando-se da retórica dos embates abolicionistas da época, Joaquim Nabuco estava certo ao quase profetizar as permanências da escravidão na sociedade brasileira. Para o final do século 19, apontava para as relações de domínio, intolerância e truculência que ligavam fazendeiros com escravos e homens livres. Nascido em Recife, certamente tinha ouvido falar da chamada revolta dos Marimbondos, quando em 1852, numa zona rural pernambucana, camponeses livres revoltaram-se, marchando em direção às vilas e enfrentando tropas imperiais. Foi uma reação contra a legislação que determinava o recenseamento civil de batizados, casamentos e óbitos. Sobretudo lutaram para não serem transformados em escravos. Com a Lei de Terras, o fim do tráfico em 1850 e o avanço das fronteiras econômicas sobre terras devolutas, esses camponeses avaliaram que as políticas imperiais visavam transformá-los -de homens livres camponeses que eram- em escravos.
Não havia necessariamente planos para escravizar homens livres no Império. Embora o medo da reescravização tenha rondado muitos, principalmente libertos temerosos da revogação de suas alforrias. No Congresso Agrícola de 1878, fazendeiros de norte a sul apostaram no trabalho livre e clamavam por mais recursos públicos. Sobretudo tinham expectativas de controle sobre os trabalhadores. Aliás, escravidão no Brasil não pode ser pensada como tendo sido um obstáculo para o capitalismo. Pelo contrário, perversamente preparou e criou bases para a economia moderna capitalista.
No último quartel do 19 chegou-se a denunciar, em embaixadas estrangeiras, as condições de vida a que eram submetidos os imigrantes europeus. Na época, considerando moradia, alimentação, carga de trabalho e incentivos, afirmavam viver pior que os escravos. E jornais noticiavam fugas das fazendas, tanto de escravos como de imigrantes europeus. Enfim, modernização com maiores investimentos de capital em equipamentos e a reorganização da produção não significaram mudanças econômicas e sociais. E não permaneceu somente uma mentalidade senhorial, e sim a modernização que preservou estruturas tradicionais.
Quem são os escravos do século 21? Filhos e netos dos escravos e excluídos do século 19. Mais do que permanecer desigual em termos econômicos, sociais e raciais no pós-1888, o Brasil reproduziu injustiças, marcando homens e mulheres. E a questão não foi somente a falta de políticas públicas após a Abolição. Houve mesmo políticas públicas republicanas reforçando a intolerância, concentração fundiária, marginalização e repressão nas áreas urbanas. A tudo isso juntou-se a impunidade de ontem com a de hoje, temperada com conivência e desmandos. E transformamo-nos numa das sociedades mais desiguais e injustas do planeta.
Quais as permanências? Miséria e ignorância. O que fazer? Primeiro, reconhecer o problema e sua gravidade: a existência do trabalho forçado -fundamentalmente a escravidão por dívidas- disseminado em várias áreas rurais brasileiras. Não há apenas situações degradantes de trabalho, mas sim trabalho escravo e suas faces de coerção, ameaças e violências. Depois, é fundamental a aplicação da lei. Alerto que não adianta culpar o passado. Nem ensaiar argumentações eloqüentes sobre o modelo econômico com dados e tabelas. É necessário resgatar cidadania para todos. Tirá-la do zero.


Flávio Gomes, 39, professor do departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é organizador, ao lado de João José Reis, de "Liberdade por um Fio - História dos Quilombos no Brasil" (Companhia das Letras, 1996).


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