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TENDÊNCIAS/DEBATES
O trabalho escravo persistirá no país?
SIM
Cidadania zero: heranças e legados
FLÁVIO GOMES
O episódio do assassinato dos fiscais que investigavam a utilização
de trabalhadores escravizados -entre
indignação e perplexidade- nos remete para uma reflexão mais profunda sobre as experiências de trabalho compulsório e a história do trabalho no Brasil.
Mergulhamos num país e em sua estrutura socioeconômica. Um passado
-que alguns insistem em desenhar distante- faz-se cada vez mais presente.
Aqui, como no restante das áreas coloniais das Américas, o trabalho compulsório constituiu-se num fato social, sequer questionado no início, para o
desdobramento da colonização e a produção de riquezas. Considerando o fim
da escravidão indígena decretado em
meados do século 18 (ainda que essa liberdade fosse uma ficção, uma vez que
fazendeiros em frentes de "civilização"
e de expansão econômica do século 19
tinham o "direito" de recrutar indígenas) e a Lei Áurea de 1888, temos três
quartos da nossa história com utilização
de trabalho escravo.
Mas, afinal, qual o passado que se faz
hoje presente com as denúncias de trabalho escravo? Resguardando-se da retórica dos embates abolicionistas da
época, Joaquim Nabuco estava certo ao
quase profetizar as permanências da escravidão na sociedade brasileira. Para o
final do século 19, apontava para as relações de domínio, intolerância e truculência que ligavam fazendeiros com escravos e homens livres. Nascido em Recife, certamente tinha ouvido falar da
chamada revolta dos Marimbondos,
quando em 1852, numa zona rural pernambucana, camponeses livres revoltaram-se, marchando em direção às vilas e enfrentando tropas imperiais. Foi
uma reação contra a legislação que determinava o recenseamento civil de batizados, casamentos e óbitos. Sobretudo lutaram para não serem transformados
em escravos. Com a Lei de Terras, o fim
do tráfico em 1850 e o avanço das fronteiras econômicas sobre terras devolutas, esses camponeses avaliaram que as políticas imperiais visavam transformá-los -de homens livres camponeses que
eram- em escravos.
Não havia necessariamente planos
para escravizar homens livres no Império. Embora o medo da reescravização
tenha rondado muitos, principalmente
libertos temerosos da revogação de suas
alforrias. No Congresso Agrícola de
1878, fazendeiros de norte a sul apostaram no trabalho livre e clamavam por
mais recursos públicos. Sobretudo tinham expectativas de controle sobre os
trabalhadores. Aliás, escravidão no Brasil não pode ser pensada como tendo sido um obstáculo para o capitalismo. Pelo contrário, perversamente preparou e
criou bases para a economia moderna
capitalista.
No último quartel do 19 chegou-se a
denunciar, em embaixadas estrangeiras, as condições de vida a que eram
submetidos os imigrantes europeus. Na
época, considerando moradia, alimentação, carga de trabalho e incentivos,
afirmavam viver pior que os escravos. E
jornais noticiavam fugas das fazendas,
tanto de escravos como de imigrantes
europeus. Enfim, modernização com
maiores investimentos de capital em
equipamentos e a reorganização da produção não significaram mudanças econômicas e sociais. E não permaneceu
somente uma mentalidade senhorial, e
sim a modernização que preservou estruturas tradicionais.
Quem são os escravos do século 21?
Filhos e netos dos escravos e excluídos
do século 19. Mais do que permanecer
desigual em termos econômicos, sociais
e raciais no pós-1888, o Brasil reproduziu injustiças, marcando homens e mulheres. E a questão não foi somente a falta de políticas públicas após a Abolição.
Houve mesmo políticas públicas republicanas reforçando a intolerância, concentração fundiária, marginalização e
repressão nas áreas urbanas. A tudo isso
juntou-se a impunidade de ontem com
a de hoje, temperada com conivência e
desmandos. E transformamo-nos numa das sociedades mais desiguais e injustas do planeta.
Quais as permanências? Miséria e ignorância. O que fazer? Primeiro, reconhecer o problema e sua gravidade: a
existência do trabalho forçado -fundamentalmente a escravidão por dívidas- disseminado em várias áreas rurais brasileiras. Não há apenas situações
degradantes de trabalho, mas sim trabalho escravo e suas faces de coerção,
ameaças e violências. Depois, é fundamental a aplicação da lei. Alerto que não
adianta culpar o passado. Nem ensaiar
argumentações eloqüentes sobre o modelo econômico com dados e tabelas. É
necessário resgatar cidadania para todos. Tirá-la do zero.
Flávio Gomes, 39, professor do departamento
de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é organizador, ao lado de João José Reis,
de "Liberdade por um Fio - História dos Quilombos no Brasil" (Companhia das Letras, 1996).
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