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São Paulo, sexta-feira, 07 de março de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Vigilância sanitária, economia e barreiras

ANTONIO CARLOS ZANINI

Quem pensa que a Vigilância Sanitária cuida apenas da qualidade, eficiência e segurança de medicamentos acerta em parte, mas não conhece o principal. As funções do órgão de vigilância sanitária (no Brasil, a Anvisa) vão além, pois influenciam a economia, o acesso da população aos medicamentos e, portanto, norteiam a soberania e a independência do país na saúde.
Construir barreiras técnicas e comerciais é uma das mais importantes funções desse órgão. Remédios, aviões, alimentos, automóveis e outros produtos seguem uma mesma regra comercial: é a da proteção do produto nacional, por meio de barreiras técnicas e comerciais, contra a indústria estrangeira.
Por que o Brasil tem dificuldades em exportar vários de seus produtos agrícolas? Por que carros americanos são raramente vistos na Europa? Por que o Brasil briga tanto com o Canadá por causa dos aviões? A verdade é difícil de apurar e fácil de distorcer; há milhares de produtos a controlar, além de muito dinheiro e aliciamento envolvidos.
Planejando-se pesquisas com doses insuficientes ou excessivas de concorrentes, os resultados distorcem a verdade. Esconder resultados negativos e divulgar apenas os positivos é prática antiética, mas muito comum. As "razões científicas convenientes" parecem sérias, iludem técnicos incompetentes, cientistas incautos e a população, mas saltam aos olhos quando se comparam decisões entre países.
No caso dos medicamentos, a "barreira técnica", a "barreira comercial" e as "tramas de mercado" têm aspectos típicos. As indústrias farmacêuticas "multinacionais" (americanas e européias) precisam de dois mecanismos para manter sua lucratividade: as patentes e o "trade-up".
Para os países produtores, medicamento é produto de investimento, que traz lucro. A indústria não faz pesquisa pelo bem da humanidade, mas porque o retorno é bom. Dentre as centenas de novos medicamentos, poucos são os que representam real novidade terapêutica. Sabe-se que a indústria farmacêutica investe entre 10% e 15% em pesquisa e mais de 20% em mercado. Logo é óbvio que o mercado é mais importante que a pesquisa.
Para que um produto patenteado possa ser vendido é preciso criar mercado. É nesse ponto que entra o "trade-up", ou "troca para cima", de produtos. É o mecanismo de mercado pelo qual um produto antigo é trocado por outro, de maior rentabilidade. Isso pode ser feito entre duas empresas diferentes, mas é mais comum com os produtos da mesma indústria. Se uma empresa quer retirar seu produto de mercado, como a Vigilância Sanitária pode negar seu cancelamento? No Brasil, esse jogo do mercado é crime, conhecido há 20 anos.
Na indústria, dezenas de cérebros brilhantes procuram distorcer, exagerar meias-verdades e inventar defeitos do concorrente. Quando uma patente está prestes a expirar, já existe um novo medicamento sendo preparado para a substituição. O novo não precisa ser melhor, pode até ser um pouco pior que o antigo, mas precisa ter patente.


A indústria não faz pesquisa pelo bem da humanidade, mas porque o retorno é bom


Países como o Canadá, por exemplo, só licenciam novos medicamentos se houver real vantagem terapêutica.
O "trade-up" inclui a batalha de desgaste e retirada dos genéricos do mercado. As multinacionais investem na compra de indústrias voltadas aos genéricos. Além disso, iniciaram uma genial guerra pelo controle de leis para "afogar" os genéricos, de modo a evitar que estes diminuam seus lucros. Citam-se pelo menos duas grandes vitórias das multinacionais:
1) Foi proibido o uso de nome genérico em "similares", quando bastaria identificar o seu produtor;
2) Foi dificultado o registro de "genéricos", por meio de testes que, mesmo incompletos, são caríssimos e muitas vezes desnecessários.
Nos países exportadores de novos medicamentos, a Vigilância Sanitária ajuda, pois o lucro gerado mantém a qualidade de vida no país. Nos países em desenvolvimento, é vital conservar os bons produtos antigos, sem se deixar enganar por decisões aparentemente sérias, mas subordinadas ao interesse comercial dos exportadores.
É função da Anvisa avaliar a relação entre custo, eficácia e qualidade dos remédios, impor barreiras técnicas, condicionar registros de equivalentes terapêuticos à sua síntese e produção no país, impedir a entrada de produtos cuja qualidade não é segura, impedir a distorção científica gerada por pesquisa antiética, zelar pela informação correta ao médico e ao consumidor e criar condições para o crescimento de uma verdadeira indústria nacional. Não é o que se viu nos últimos anos.
A atual estrutura da Anvisa está totalmente inadequada às suas funções. A diretoria tem de ser sempre da confiança do presidente, portanto não pode ser estável; os técnicos especialistas em análises farmacológicas devem ter estabilidade, para que possam opinar livres de pressões. É o oposto do que existe hoje.
Só haverá síntese e produção de medicamentos no Brasil se o governo decidir amparar quem investe, seja indústria nacional ou não. Melhor e mais seguro é investir nos laboratórios estatais.
Em resumo, a Anvisa é matéria de segurança nacional e o acesso da população ao tratamento medicamentoso deve depender da efetiva atuação dos senhores ministros da Saúde, da Economia e do Comércio Exterior, sob supervisão pessoal do presidente da República.

Antonio Carlos Zanini, 64, editor médico do Grupo Zanini-Oga, foi secretário nacional de Vigilância Sanitária (1980-85).


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