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São Paulo, sábado, 07 de junho de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

O Pão-Duro

RIO DE JANEIRO - Uma estudante de comunicação perguntou-me qual teria sido o dia em que me senti mais importante. Respondi na bucha: "Foi com o Pão-Duro". Ela quis saber quem era o Pão-Duro.
Chamava-se Machado, tinha um nome antes e outro depois, mas, para todos os efeitos, era Machado. Que logo foi substituído por Pão-Duro, porque só andava de bonde. Tinha um negócio qualquer na cidade, morava bem, na casa ao lado da nossa, os quintais eram separados por pequeno muro, quase formavam um só quintal.
Tinha muitos filhos e filhas que, em homenagem ao pai, recebiam nomes começados com a letra M: Moacir, Murilo, Milton, Maurício e uma infinidade de Marias, por sinal, boas moças e belas, alimentavam a lascívia infantil de todos os garotos da rua.
À tarde, com a pontualidade de um cometa, de um eclipse total, de um papa-defuntos, Pão-Duro vinha da cidade sempre no mesmo bonde, sentado no primeiro banco. Dizia-se que não pagava a passagem, dada a intimidade com os motorneiros. E trazia sempre um pacotinho de 200 gramas de manteiga, suficiente para o pão da família, umas 20 pessoas, entre filhos e agregados
Pão-duro nos gastos, era mais duro ainda nas palavras. Nunca houve notícia de que o Pão-Duro tivesse falado com alguém na rua, dado bom dia a um vizinho.
E foi com ele que me senti importante. Depois de um ano de seminário, passei cinco dias em casa, fui para os lados do muro que nos separava e até certo ponto nos unia aos domínios do Pão-Duro.
De repente, sua cara apareceu em cima do muro, que não era alto. Estava em mangas de camisa, coisa nunca vista em todo o bairro e adjacências. E sorria para mim. Perguntou se eu estava gostando do seminário, de usar batina, de rezar o tempo todo.
Respondi que sim. Ele continuou sorrindo, não sei se me lastimando ou se me aprovando. Agradeci a atenção e, pela primeira vez e única, descobri que eu era importante.


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