São Paulo, sexta-feira, 07 de outubro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Erros e crimes

IVÁN IZQUIERDO

Uma das coisas que mais me impressionam nestes meses de mensalões, mensalinhos, seguradoras, correios, traições e demais corrupções é que os principais responsáveis, quando se referem aos crimes correspondentes e a seus autores, repetem a palavra "errar". "Erramos", disse o presidente a uma entrevistadora na França -e depois reiteradamente a outros repórteres ou em discursos. Ou, mais freqüentemente, "erraram", como se estivesse falando de gente que não conhece ou com a qual não tem muito a ver. O mesmo verbo foi utilizado à exaustão por José Dirceu, Marcos Valério, Delúbio e demais membros da confraria.


Só merece ser presidente quem é "o primeiro a saber", principalmente quando se trata de crimes vinculados ao governo


Nas religiões, os crimes cometidos por essa alegre quadrilha se denominam pecados, e não erros. Erro é pretender interferir na escolha de um novo papa, por exemplo; mas subornar deputados ou roubar dinheiro público ou privado são pecados. Isso pensa a religião da qual várias dessas pessoas alegam ser adeptas e à qual alguma vez juraram sua fé -ao retirar recentemente um projeto de lei de aborto, por exemplo. Já na Justiça, esses pecados são considerados crimes, e a lei do país estabelece penalidades para os mesmos.
A palavra "erro" pode se aplicar a crianças que, por desconhecimento, quebraram algum vidro com uma bola mal chutada. Mas aqui a bola foi mal chutada de um ponto de vista ético, não houve inocência nem desconhecimento do alcance e do propósito dos crimes. A imagem do Brasil como um todo foi grosseiramente manchada, justamente quando os líderes que "erravam" estavam postulando o país para ocupar um lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU, nada menos! Foi manchada não só a imagem do Brasil mas também a de suas instituições de governo, a de suas autoridades, a de um número grande de funcionários, a da trajetória inteira de um partido que, durante 25 anos, declamou honestidade e a reclamou dos outros e a imagem da trajetória de seu líder inconteste.
De nada adianta tentar escamotear a figura do Lula para manter o dólar baixo (como pede o FMI) e a bolsa alta (como pede o famoso mercado). Se ele não sabia dos crimes que estavam sendo cometidos, fica como aquele marido que parece ser sempre "o último a saber": bem pouca coisa para um presidente da República. Só merece ser presidente quem é "o primeiro a saber", principalmente quando se trata de crimes que dizem respeito à gestão de seu próprio governo, aos seus colaboradores mais próximos, ao seu partido e aos seus aliados.
Desolador foi também presenciar a maneira descarada com que o "mercado" e boa parte da imprensa que lhe responde operaram o desempenho do dólar e da bolsa durante estes meses de vergonha. Quando parecia que algum dos peixes grandes ou o governo como um todo iriam se salvar de tal ou qual acusação, o dólar caía e subia a Bolsa, impulsionados por boatos extraordinários de crescimento econômico (3,1% são um crescimento tão extraordinário assim ou o bolso das pessoas na rua tem uma opinião diferente?).
"Ah, parece que essa aí não vão conseguir provar!", "Palocci se safou!" etc. Essas frases foram tão ouvidas nos meios "bem pensantes" durante as primeiras acusações contra o Dirceu ou contra Genoino ou contra Delúbio... Claro que depois vieram as segundas e as terceiras acusações, vieram as provas, e o número de acusados subiu. Até o pequeno subornador de restaurantes está entre os acusados -só que de uma coisa menor, como corresponde à sua estatura moral e intelectual.
Festeja-se, nesses meios "bem pensantes", não a possibilidade de que o próprio presidente possa ser inocente, mas o fato de que até agora conseguiu tirar o corpo fora. Conseguiu? Então um bom álibi é mais importante do que a responsabilidade pelos subordinados? Os "erros" da Alemanha nazista foram só dos suboficiais da SS? E os do antigamente bem-amado Stalin foram dos comissários mais longínquos?
Creio que esteja na hora de chamar as coisas pelo nome e não mais tentar nos convencer de que escapar de uma acusação é tão bom quanto não cometer os crimes. Ou de que crime é "erro". Há uma sociedade que, por incrível que por momentos pareça, é profundamente ética: chama-se o Brasil.
Sei que no país onde o rigor da prisão está reservado aos ladrões de galinhas essa afirmação soa perigosamente ingênua. Mas este é um país onde a maioria das pessoas que encontra pacotes na rua os devolve. Onde a maioria da população ajuda a seus necessitados. Onde há milhões que se dedicam, de graça, ao trabalho solidário. Onde cada incêndio, desastre natural ou acidente grave revela heróis que preferem depois ficar no anonimato. Onde há, sem dúvida, muitos criminosos e bandidos, mas a maioria da população os detesta, embora os tema. O temor vem da ineficiência da força pública, cujo orçamento é surrupiado para atender, pelo que parece, a demanda de politiqueiros insaciáveis.
Vale a pena defender a nossa sociedade, porque é a sua ética que a mantém coesa. No dia em que o exemplo que vem de cima a permeie por completo, Deus nos acuda.

Iván Izquierdo, 68, neurocientista e escritor, é professor titular de medicina da PUC-RS.


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