São Paulo, quinta-feira, 07 de novembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Agora é cumprir

CLÁUDIO WEBER ABRAMO

Ainda no primeiro turno da eleição que acabaria por vencer, o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva comprometeu-se publicamente a adotar uma série de medidas específicas de combate à corrupção. Tais medidas, propostas pela Transparência Brasil, haviam sido consignadas num documento denominado Compromisso Anticorrupção, que Lula assinou.
O princípio que orienta aquele documento é o de que a corrupção só pode ser atacada uma vez que se compreenda o conjunto de circunstâncias que a propiciam. Antes de constituir problema moral de cada indivíduo, ou uma decorrência de pretensas influências culturais, o ato de corrupção só pode existir se houver oportunidade para que ocorra. Reduzam-se as oportunidades e diminuirão as ocorrências. Ou seja, é melhor prevenir do que remediar.
Dito ainda de outra forma, a corrupção acontece por falhas nos mecanismos de controle do Estado. Visto sob esse ângulo, o Estado é constituído legal e administrativamente por uma cadeia de mecanismos de controle. Os poderes do Estado -Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público- não apenas apenas possuem controles internos, como controlam uns aos outros, ou deveriam fazê-lo.
O documento da Transparência Brasil que Lula assinou traz oito medidas destinadas a aperfeiçoar esses controles. A primeira e principal é a formação de uma agência anticorrupção. Instituída no Executivo, mas com participação (por convite) do Judiciário, Legislativo, Ministério Público, Tribunal de Contas da União e entidades da sociedade civil (estas com papel consultivo), num primeiro momento a agência teria como missão traçar um plano anticorrupção. Tal plano seria concluído dentro dos primeiros seis meses de mandato. Então a agência orquestraria a sua execução.
A idéia da agência não é criar uma espécie de "Ministério de Investigações", ou mais um aparato burocrático estatal, mas propiciar um foco de pensamento no núcleo central do poder a fim de definir as áreas mais importantes de intervenção, articular os diferentes mecanismos de controle do Estado de forma a os fazer funcionar melhor, definir indicadores de progresso e monitorar a eficácia das medidas colocadas em vigor.
Note-se que, diferentemente de muitos outros países pobres, o Brasil tem instituições sólidas e estruturadas. Ao Brasil, no geral, não faltam leis, regulamentos ou instituições. O que muitas vezes falta são processos políticos, institucionais e administrativos que façam as leis e os regulamentos valerem.


Note-se que, diferentemente de muitos outros países pobres, o Brasil tem instituições sólidas e estruturadas


Dois exemplos bastam para ilustrá-lo. A grande maioria dos países, incluindo os desenvolvidos, debate-se atualmente com o problema da garantia ao público do acesso às informações detidas pelo Estado. O Brasil é, talvez, o único país em que isso é assegurado irrestritamente na Constituição (art. 5º, inciso 33). Por que, então, há tão pouco acesso real à informação no Brasil? O que falta são mecanismos administrativos para materializar esse acesso -no que as iniciativas de governo eletrônico têm papel muito importante, desde que corretamente concebidas e articuladas entre si.
Outro exemplo é o fato de que grande parte da corrupção acontece nas licitações públicas. A legislação brasileira para licitações é uma das mais aperfeiçoadas do mundo. Um estudo comparativo realizado pela Transparência Internacional entre ambientes de licitação pública em mais de dez países latino-americanos situou o Brasil no alto da escala, a grande distância do mais próximo.
O que falta no país para que as licitações sejam mais limpas não é um reordenamento legal, mas a disseminação de procedimentos conformados à lei, a educação dos quadros administrativos (incluindo os do Judiciário) para que entendam como aplicar as regras, a estimulação dos segmentos econômicos para que defendam seus direitos e interesses, a difusão de informações detalhadas sobre os gastos públicos, de forma a permitir o controle da imprensa e das comunidades. Seria papel de uma agência anticorrupção especificar as medidas a serem tomadas pelos diferentes órgãos e poderes do Estado para atingir esses -e outros- objetivos.
Vários países, entre eles diversos do Primeiro Mundo, fundaram agências como a preconizada pela Transparência Brasil. Não o fizeram porque faltassem leis ou porque considerassem suas instituições apodrecidas. Fizeram-no porque reconheceram a complexidade intrínseca da corrupção e a necessidade de melhor articular os mecanismos de controle do Estado e da sociedade.
Numa democracia representativa, o mecanismo de controle mais fundamental de todos é o voto. Em 28 de outubro, o eleitor brasileiro escolheu Lula e seus compromissos de campanha. Em particular, escolheu um candidato que se comprometeu a exercer um combate organizado à corrupção.
Lula reiterou a promessa em seu pronunciamento de 29 de outubro, afirmando que "a dura travessia que o Brasil enfrentará exigirá austeridade no uso do dinheiro público e combate implacável à corrupção". Agora é cumprir.


Cláudio Weber Abramo, bacharel em matemática e mestre em filosofia da ciência, é secretário-geral da ONG Transparência Brasil (www.transparencia.org.br) e membro do Conselho Diretor da Transparency International.




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