São Paulo, quinta-feira, 07 de novembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Fila para transplante de fígado

SILVANO RAIA

O critério de prioridade na fila de transplantes de fígado tem sido motivo de muita discussão, merecendo comentários em editorial nesta Folha no dia 8/10 ("Fila de transplantes", pág. A2). Entretanto resultados de uma recente pesquisa justificam que o tema seja abordado mais uma vez.
No Brasil, até há alguns anos, os que podiam mais passavam na frente dos que podiam menos. Em 1997 votou-se uma lei que corrigiu essa distorção inaceitável, determinando que a sequência das cirurgias obedecesse a ordem cronológica de inscrição na lista. A avaliação desse critério, sem considerar dados recentemente disponíveis e adiante apresentados, explica a reação dos candidatos em fase mais adiantada da doença. Com menos tempo de sobrevida, correm maior risco de não serem transplantados em tempo. Defendem, então, um critério que confere prioridade aos pacientes mais graves conforme avaliação pela equipe responsável.
Até recentemente, o argumento dos que defendem, como nós, o critério cronológico consistia no risco de subjetividade inerente à avaliação de gravidade dos inscritos. De fato, é dever do médico defender os interesses do seu doente, princípio que, neste caso, pode causar distorções de identificação muito difícil.
No Brasil, esse risco deve ser considerado com particular atenção, uma vez que os pacientes inscritos na lista de espera, por exemplo, no município de São Paulo são transplantados por 14 equipes diferentes cujo único denominador comum é o credenciamento no Ministério da Saúde. Nessas circunstâncias, o risco de subjetividade é muito maior, pois cada equipe tem sua própria interpretação da gravidade dos pacientes.
Em alguns países esse risco é minimizado, como na Inglaterra, que dividiu seu território em áreas com cerca de 10 milhões de habitantes, credenciando em cada uma delas só uma equipe transplantadora com uma única lista de espera. Assim, o critério de gravidade é aplicado para todos os pacientes de uma área pela mesma equipe e, logo, com idêntica subjetividade.
Com a mesma finalidade, nos EUA, desde fevereiro deste ano, a gravidade dos receptores é avaliada numericamente, por meio de um índice denominado Meld. Pretende evitar interpretações subjetivas baseando-se numa fórmula matemática em que são inseridos apenas resultados de três exames de laboratório. O índice de pontuação varia de 1 a 40, sendo que valores mais altos correspondem a maior gravidade e, por essa razão, têm prioridade para transplante. Esse critério tem se mostrado adequado nos EUA, onde há um número de enxertos muito maior que o nosso.
No início do mês foram divulgados resultados de uma pesquisa que questionam a validade do método Meld aqui no Brasil, onde o tempo de espera em lista é significativamente maior do que em outros países. A pesquisa, orientada pelo dr. Paulo Massarollo, venceu o prêmio anual concedido pela Faculdade de Medicina da USP ao melhor trabalho dos estudantes na área de cirurgia.


Nos EUA a gravidade dos receptores é avaliada numericamente, por meio de um índice denominado Meld


Foram analisados retrospectivamente 237 transplantados no Hospital das Clínicas, de 1º/11/95 a 30/7/01, relacionando o índice Meld no pré-operatório com o resultado do transplante. Foram comparados dois subgrupos: um, de 126 pacientes menos graves, com Meld médio de 9,4, e outro, de 111 pacientes, mais graves, com Meld médio de 20,1. Obteve-se uma informação da maior importância. As curvas de sobrevida de cada subgrupo são estatisticamente diferentes entre si.
O subgrupo com índice Meld mais baixo apresentou mortalidade de 15% nos primeiros seis meses após o transplante, ao passo que, nos com Meld mais alto, esse percentual foi de 26%. Demonstrou-se que a mortalidade dobra a cada aumento de 15 pontos na escala Meld. Por meio da equação obtida, estima-se que, nos pacientes com Meld igual ou superior a 40, a mortalidade após o transplante ultrapasse 50%.
Esses resultados evidenciam o erro que seria adotar o critério Meld aqui no Brasil. Em países com captação de órgãos muito eficiente é possível transplantar todos os inscritos na lista num período não superior a seis meses. Nessas circunstâncias, pode-se dar prioridade aos casos mais graves, apesar da maior mortalidade nos primeiros meses após a cirurgia.
Entretanto, no Brasil, pela falta de enxertos, apenas 10% dos inscritos são transplantados a cada ano, após uma espera de cerca de 24 meses. Nessas circunstâncias, se adotássemos o critério de gravidade Meld, estaríamos preterindo os candidatos com maior probabilidade de se beneficiar do transplante até quando apresentassem um Meld suficientemente alto, que lhes conferisse prioridade. Ressalte-se que, devido ao longo tempo de espera, que permaneceria inalterado, seriam operados apenas pacientes com Meld muito elevado. Na realidade, estaríamos substituindo a mortalidade na lista de espera por mortalidade pós-operatória precoce.
Percebe-se, assim, que a recente pesquisa confirma que, no Brasil, o critério cronológico é o único capaz de garantir a justa distribuição e o melhor aproveitamento dos escassos enxertos disponíveis. Deve ser adotado até que se consiga melhorar a captação e, como em outros países, obter enxertos suficientes para transplantar todos (ou quase todos) os inscritos. Esse deve ser o objetivo prioritário para o progresso do setor.


Silvano Mário Attilio Raia, 72, professor emérito da Faculdade de Medicina da USP e membro da Academia Nacional de Medicina, é responsável pela Unidade de Fígado.


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