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São Paulo, quarta-feira, 09 de abril de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Personagens

MÁRIO AMATO

Velho encanecido resolve fazer uma retrospectiva dos acontecimentos mais importantes de sua vida.
Na infância, quando começa a discernir e a acompanhar seu pequeno mundo, sente algo desconhecido. Será que é o nascimento da alma? Mas a alma nasce com o feto, portanto o que ele sente é a percepção natural do meio ambiente em que começa a viver, o lar e o mundo exterior que percebe. Vai acumulando vivência, com as alegrias, as tristezas e até sofrimentos, que o ajudam, hoje, a julgar a relevância dos acontecimentos.
Se for uma criança bem-nascida, logo verificará as oportunidades perdidas, as injustiças que terá cometido e quanto sofreu depois de as reconhecer. E notará como é fácil julgar os semelhantes com justiça própria e como é difícil fazer um julgamento em que não incorra em erro de superestimar ou subestimar. Então perceberá que ninguém pode ser juiz de si próprio.
O encontro com a vida real depende de ser bem-nascido ou malnascido. Se bem-nascido, tem um lar com amor, carinho, boa formação moral e ética, sem maiores problemas para enfrentar a vida, sem traumas. Mas, apesar dessa fortuna, a herança recebida vai ao encontro de um mundo exterior, no qual depara com outros personagens, iguais e desiguais, que não tiveram a mesma sorte e não têm as mesmas oportunidades. É um encontro semelhante ao do rio com o mar, como choques estrondosos. Mas o mar sempre vence. Na vida ocorre a mesma coisa, o mesmo estrondo, só que, diferentemente do encontro das águas, deixa marcas de incompreensão. Inicia-se, desse modo, a peleja da vida.


O mundo mudou graças aos impulsos da ciência e da técnica, do volume cada dia maior de informações


Imaginemos, agora, que o lar já não é mais o aconchego de antes. O mundo mudou graças aos impulsos da ciência e da técnica, do volume cada dia maior de informações, mostrando que nas democracias todos somos iguais, mas uns são mais iguais do que outros, dando margem ao aparecimento dos analistas com suas previsões -geralmente analistas de fatos consumados.
Isso faz lembrar o que aconteceu na Inglaterra, onde foi feita uma pesquisa sobre economia, finanças e aspectos sociais do país e os que mais acertaram foram os operários de setor de transporte, talvez por serem práticos e mais objetivos, por não terem ilusões com a realidade da vida, frustrando os intelectuais e os demais estudiosos.
Estamos vivendo mudanças e a maioria já não sabe o caminho a seguir, permitindo que se estabeleça a luta entre o ser e o ter, entre o ético e o aético, entre o moral e o amoral, entre o conhecimento geral e o específico, entre a constituição da família e as uniões espúrias, entre a paternidade responsável e a irresponsável, entre obrigações e direitos, entre saúde e consumo de drogas, entre o trabalho humano e a automação fria e sem arte, deixando de lado, como coisa inútil, pessoas que estão na plenitude de sua capacidade de trabalho e de viver a música, a arte, a literatura, a escultura e tudo o que de bom a vida oferece.
Como não somos uma unidade, mas a centésima milionésima parte do ser humano, dentro do universo uno e indivisível, temos de nos unir na sociedade em que vivemos, particularmente por meio da educação, da coexistência que torna a vida fácil de ser vivida, como um conjunto verdadeiramente harmônico e saudável para todos, e não apenas para uns poucos.
É isso ou o caos, as guerras em que, a pretexto de pequenas coisas, as pessoas se matam, em que parte da humanidade se flagela, levando a verdadeiro cataclismo social, fazendo surgir os salvadores da pátria, que não só engodam os demais como engodam a si próprios.
Vamos empreender a campanha da convivência pacífica, em que os bem-dotados e os afortunados por valor próprio ou por herança se destacam trabalhando, para que o seu semelhante se iguale o mais possível a ele e possa usufruir plenamente os seus direitos e não se torne discriminado e infeliz, sem maiores possibilidades de uma educação de vida consentânea com a dignidade humana.
Vamos trabalhar para igualar.

Mário Amato, 84, empresário, é presidente emérito da Fiesp, presidente do Conselho de Orientação Política e Social da Fiesp e do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Comércio Exterior.


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