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São Paulo, sábado, 09 de agosto de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

"O que posso fazer?"

RIO DE JANEIRO - Foi há algum tempo, viajava pela antiga TAP, com o fotógrafo Antônio Rudge, para cobrir a Revolução dos Cravos, em Portugal. Como sempre inquieto, no meio do percurso ele quis fotografar o piloto. Mandou um recado pelo chefe dos comissários de bordo e foi convidado a visitar a cabina de comando. Quis que eu fosse junto.
Eu já estava dormindo, ele me cutucou e me incentivou: "Vamos ao trabalho!". Estremunhado, lá fui eu para a cabina, pensando que já viajara o suficiente, deveríamos estar chegando a Lisboa. Na cabina, vendo a noite cerrada à frente, sem saber onde era o céu e onde era a terra, ousei perguntar onde estávamos.
Com o sotaque português bem acentuado, o piloto informou: "Daqui a pouco vamos sobrevoar Fortaleza, no Ceará". Fiquei espantado: "Ainda? Ainda estamos no Brasil?". O piloto se desculpou: "O vosso país é imenso. O que posso fazer?".
É evidente que ele nada podia fazer, a não ser continuar mantendo o avião no ar, do contrário eu não estaria aqui ocupando este espaço que poderia ser aproveitado por outros escribas para reflexões mais importantes sobre o momento nacional.
Mas, pensando bem, valeu a lembrança. O nosso país, quer dizer, o país do Rudge e meu, que éramos os únicos brasileiros na cabina, é realmente imenso. Maior do que o abismo que os políticos do governo e da oposição garantem que nos tragará, os primeiros tentando reformas para diminuir o abismo e aumentar o país, os segundos aumentando o abismo e diminuindo o país para que o governo caiba no poço e nele fique para sempre.
Numa hora dessas, diante de tantas emoções que provocam espasmos de prazer e dor em políticos e colunistas comprometidos com as coisas e as causas em jogo, eu dou razão ao piloto português que cumpria humilde e rotineiramente o seu dever. Não tenho culpa de o país ser imenso. O que posso fazer? Nada. Já é alguma coisa.


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