São Paulo, quarta-feira, 09 de outubro de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

Vovô viu a ave

RIO DE JANEIRO - No mês passado, participei do júri do Prêmio Cruz e Sousa, patrocinado pela Fundação de Cultura de Santa Catarina, neste ano dedicado ao conto. Em três meses de inscrições, apareceram mais de 1.400 inéditos, vindos de todos os Estados, todos sob pseudônimo, com a identificação de cada autor em envelope lacrado.
A comissão teve bastante trabalho, mas, sem mortos e feridos, Moacyr Scliar, Luiz Vilela, Flora Sussekind, Ítalo Moriconi e eu, com a ajuda logística de Flávio Cardoso, chegamos a um resultado consensual, dada a qualidade dos melhores contos.
É evidente que havia trabalhos medíocres e até equivocados. Não foi por aí que fiquei impressionado com a vitalidade do gênero, que muitos consideram terminal ou defunto.
Em tão pouco tempo para as inscrições, que exigiam originais bem apresentados e cumprimento de outros quesitos rotineiros em concursos afins, a expressão literária, que tem hoje a concorrência da expressão audiovisual, está longe de sua falência.
Volta e meia, proclama-se o fim da literatura. Duas gerações, pelo menos, habituaram-se a ver e a ouvir, sem necessidade de ler. O vocabulário dos jovens, em 30 anos, resumiu-se a 40 ou 50 palavras básicas: oi, legal, tou aí, corta essa etc.
Nesse particular, a internet reabilitou a palavra e a frase. Muita gente escreve "oço" em vez de "osso", mas tem necessidade de se expressar pela linguagem escrita. "Vovô viu a ave" não tinha mais sentido. Voltou a ter por conta da multidão de crianças e de jovens que, em todo o mundo, procuram comunicar-se pela letra impressa na telinha. Instala-se um Aurélio no computador como se fosse um ""game" a mais.
De repente, a criança ou o jovem tem necessidade de desabafar, de fazer uma queixa ou um elogio, de dizer alguma coisa que só a palavra poderá exprimir. Erra na ortografia, na gramática, mas diz o que sente ou pensa que sente. E tudo começa outra vez, a ave sendo vista pelo vovô.



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