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São Paulo, quinta-feira, 09 de outubro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

À esquerda, rótulo e bula

CANDIDO MENDES

Lula declarou , diante da melhor ribalta para faze-lo lá fora, que seu governo não é de esquerda. Disse-o diante do presidente Chávez, o hóspede imprensado, sem parar, pelo mais agressivo neoliberalismo continental. Quer liberar o que faz da tirania das palavras, que correm logo à chantagem ideológica. Recusa o rótulo para ficar com a bula. É pela praxe pura que se responde ao que está escrito no programa do PT, e foi ao brado todo da campanha. O presidente compromete-se com a proposta, mais até que de mudança, de transformação social. E esta não se enuncia, mas se cobra. Tanto a direita é toda proclamação e anúncio, tanto a esquerda terá hoje o pudor de dizer o seu nome, tanto não justificar o a que veio. É desígnio, como salienta Tarso Genro, em processo, e por ele quer ser avaliado.
Aí estão as duas reformas ganhas na primeira rodada do Legislativo. O governo isolou os radicais, indispensáveis para incubar a utopia, e pôs-se ao chicote para recolher ao redil os petistas que se abstiveram, no primeiro teste da reforma previdenciária. Partido da transformação não sobe no muro, como sabe que cada voto, na mudança para valer, conta como se fosse decisivo.
Conhecendo e respeitando a vocação para o martírio sem volta, o partido colhe agora as certezas que marcavam o núcleo mesmo do seu sucesso. Ou seja, da ala de Lula, Palocci, Dirceu, Dulci ou Gushiken, que fez da "articulação" o segredo de seu prevalecer. E é o que agora, com as duas vitórias no bolso, permite ao PT enfrentar os arrufos da política menor de sempre, do Brasil das clientelas e do deixa-disso, redimensionando-as ao corte da relevância histórica.
Tem-se pudor em falar da esquerda, como se desmoraliza o pseudofranciscanismo do dar para receber, em face da dimensão essencial da negociação política. Nem se a pode afastar, num critério de amadurecimento democrático do país, que sabe da diferença entre a detergência hipócrita dos indecisos e os que não hesitam em sujar as mãos com o limo da modelagem exigida pela nação em processo. Quem hoje aperta o nariz à construção das novas maiorias é quem temia o engodo do partido, pelo outro lado e como o perigo pérfido das esquerdas no poder; de um Lula que mandasse às urtigas a pele do cordeiro, depois do tira-teima eleitoral com o Brasil de sempre. Este, no caso protagonizado pelo embrulho inodoro em que o neoliberalismo embalou nossa exigência social-democrática.



O empate de sempre não acontece. O país não se engana mais sobre de quem Lula está ganhando

A guerra das frases e dos epítetos vem a tempo certo quando se estoura o ferrolho da inação, e em menos de mês libertamo-nos do pietismo utópico, ou dos perfeccionismos esterilizantes da busca do melhor momento para a briga política por um governo que estréia, saindo do ninho quente da lua de mel.
Lula agora puxou uma tarrafa de um excesso de votos, na quebra do empate entre o sim e o não, em que mesmo o PFL e o PSDB assumem a custo o assento, agora, do ser contra. Escapou-lhes o terceiro parceiro, no que o PMDB não brinca em serviço, quando sabe o que pode fazer, lá ou cá do palácio. Mais ainda, tem a condição de vencer a sua guerra endogâmica e particular com o pefelê, partidaço das clientelas de todo o sempre, no núcleo do Brasil arcaico, mas sempre a sobreviver, mais de capa que de espada, na ribalta eleitoral.
Foi quando a vitória na Previdência mostrou que o Brasil não se identifica mais com a nação do serviço público, suas prebendas, pagas de penacho e privilégios ou, sem esses, na pobreza, mas também da garantia da remuneração fora do desemprego, a que está exposto o gigantesco país da oferta incerta do trabalho. Esse Brasil em processo é também, pela reforma tributária, o que soube desonerar os tributos da nossa produção, garantir-lhe contra o roldão dos importados e carregar a imposição, cada vez mais sobre rendas e lucros.
Não temos precedente de governo que estoure mais de metade do apoio popular na avaliação de "bom" ou "ótimo" dos seus resultados. Saiu-se da mornidão do regular, cujo trem-trem é o melhor dos consolos de quem se acostumou ao bem-bom dos coxins do Executivo na sua rotina. Nem há como justificar o ranço udenóide de velha e descabida marcação de um moralismo na coisa pública, em ver-se o governo recorrer ao que chama, de aparato eleitoral, saído do êxito de negociação das maiorias, hoje capazes de mudar o centro de gravidade da nação que aí está.
A clientela serve de âncora, mais que transporta votos e estabiliza um status quo. Mas pode se somar a uma política de mudança e, aí, até exceder-se, no misto entre o servilismo e a esperteza política que os partidaços logram converter-se ao outro Brasil, por atrição. Até metade do PFL não resiste à razão cínica, neste rumo, por mais que faça juras ao emperrado e inédito mister de oposição.
Ineditamente soube o sistema, sem receio, espichar concessões. Lula tem direito a dizer que só ele lograria o verdadeiro salto: o do país de fora que passa a acreditar na mudança, vencendo paleodescrentes e neocínicos. O empate de sempre não acontece, nem volta o jogo ao velho meio-de-campo. O país não se engana mais sobre de quem Lula está ganhando. A comemoração da esquerda vem depois, só ao fim da partida.

Candido Mendes, 75, membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão de Justiça e Paz, é presidente do "Senior Board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco.


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