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São Paulo, terça-feira, 09 de dezembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Sobre as causas da estagnação

GILBERTO DUPAS

O Plano Real constitui-se no grande feito econômico do Brasil na última década do século que passou. Suas repercussões foram intensas: elegeram Fernando Henrique Cardoso, causaram uma forte recuperação da renda e acabaram com a inflação crônica no país.
No entanto, a partir de sua consolidação, entre 1995 e 1996, mergulhamos numa queda contínua do crescimento e da renda média das famílias; já perdemos boa parte dos ganhos do real, atingindo recordes contínuos de desemprego e uma quase-estagnação após 2001. Embora estejamos prestes a uma recuperação do PIB em 2004, é bem possível que ela possa ser mais um "vôo de galinha", como o foi a do ano 2000.
Afinal, o que ocorreu com as variáveis macroeconômicas do país para impor-nos tantas recentes decepções? Pesquisa que estamos concluindo no Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais, com o apoio do IRS e da Fundação Seade, permite-nos lançar mais luzes sobre essa questão. A primeira coisa a fazer é enxergar melhor que país é este.
Somos uma economia que se diversificou rapidamente a partir dos anos 1950. Hoje a formação do nosso PIB depende apenas 10% da agropecuária e centra-se na indústria (36%) e nos serviços (54%). Porém o pouco que conseguimos crescer nos últimos anos acabou vindo da dinâmica de nossa agricultura. Devemos a ela mais do que o dobro da contribuição para o nosso modesto crescimento nos últimos anos. Se olharmos o PIB sob a ótica da renda, a do trabalho é equivalente à advinda do capital (cerca de 40% do PIB cada). O restante são as rendas do governo (IPI, ICMS e ISS), que cresceram 27% no pós-real, enquanto a renda do capital cresceu 10% e a do trabalho praticamente não se moveu.


Só cresceram a carga tributária e brutalmente o volume de juros pagos pelas dívidas interna e externa


Esses dados são confirmados se mirarmos pelo lado da despesa: o nível de consumo real das famílias, responsável por 63% do PIB, reduziu-se após 1996, ao mesmo tempo em que estagnaram os investimentos públicos e privados. Quanto ao lucro dos negócios, o das empresas não-financeiras cresceu 17% entre 1996 e 2001; já o das empresas financeiras, sócias da dívida pública, aumentou de 75%. O que amenizou um pouco a estagnação da renda familiar foram as transferências do governo, especialmente aposentadorias, pensões e seguro-desemprego. Elas cresceram tanto quanto a receita tributária do governo (29%). Já a formação bruta de capital fixo ficou em meros 5%.
Em compensação o Estado foi sangrado fundo em imensas despesas de juros (137% de aumento), responsáveis por quase todo o déficit do governo no período de 1996 a 2001, impedindo o investimento e o consumo públicos.
O rápido raio-X de nosso pífio crescimento destaca apenas o setor agrícola, especialmente após os choques cambiais iniciados em janeiro de 1999. Dos 7% entre 1999 e 2002, a agricultura trouxe 25% deles, embora pesando só 10% do PIB. Grande parte disso se deu pela contribuição expressiva de suas exportações na redução do déficit comercial, aproveitando-se do dólar desvalorizado e dos bons preços das commodities.
Outra questão relevante é a queda da renda. Enquanto o consumo per capita das famílias brasileiras não cresceu no período de 1996 a 2002, o rendimento total dos ocupados nas regiões metropolitanas caiu 17%, sendo maior ainda em São Paulo. Estabelece-se aí uma clara gradação do aumento da precariedade. Seja nas variações do número de pessoas necessitadas e dispostas a trabalhar (PEA), do número de desocupados, de empregados com carteira ou dos trabalhadores por conta própria, em todos os casos o pior desempenho foi o da região metropolitana de São Paulo, seguida -nessa ordem- pelas outras metrópoles, pelo Estado de São Paulo e pelo resto do Brasil. Quer dizer, as metrópoles brasileiras se transformaram no depósito de precariedade, de pobreza e de concentração de renda no país.
A pesquisa do Ieei revela também, a partir de tabulações inéditas do Seade, o perfil das famílias paulistanas por natureza de ocupação: 38% delas têm todos os seus membros trabalhando exclusivamente no mercado formal e 26% delas têm todos eles com ocupação informal. A renda média per capita dessas famílias recua de R$ 773 mensais para R$ 570, R$ 421 e R$ 362, quando elas passam de membros totalmente formais para maioria formal, maioria informal e totalidade dos membros informais. O que demonstra uma clara relação entre a informalidade e a precariedade.
Quando agrupamos a zona da formalidade e a da informalidade, entre 1995 e 2002, notamos que o número de pessoas abrigadas na categoria de famílias com predominância ou totalidade formal reduziu-se em 8%; já as informais aumentaram em 22%. Enquanto isso a renda per capita média caiu em todas as categorias, embora mais na informal (30% contra 21% na formal).
Esse é o crítico panorama de um país que não cresce desde a estabilização dos efeitos do Plano Real, porque estagnaram tanto a renda das famílias como o consumo e o investimento. Só cresceram a carga tributária e brutalmente o volume de juros pagos pelas dívidas interna e externa. Como o aumento da arrecadação não foi suficiente para pagá-lo, restou cortar fundo o Orçamento em todos os níveis e garrotear ainda mais o crescimento. Ainda que evitando conclusões fáceis em assunto tão complexo, a "galinha" só não aterrizará de novo em 2005 se houver uma redução muito mais radical dos juros, que depende de políticas públicas capazes de lidar com os nossos passivos externo e interno.
Pena ser tão fácil diagnosticar e recomendar e tão difícil operar. Até lá, a miséria e a precariedade irão continuar a se acumular nas metrópoles do país. E o governo tentará tapar o sol com a peneira do assistencialismo.

Gilberto Dupas, 60, economista, coordenador-geral do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da USP, é presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais.


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