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Ensinar medicina, hoje
Em relação à medicina que precisa ser praticada hoje, as escolas estão falhando em todos os sentidos
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VICENTE AMATO NETO e JACYR PASTERNAK
É tradição em medicina: quem está em atividade ensina quem está
começando. Não é sem motivo que do
juramento de Hipócrates consta um pedaço no qual o médico declara que ensinará a arte (naquele tempo, medicina tinha pouco de ciência) aos filhos dos
seus professores, configurando um jeito
de pagar o que recebera.
Hoje em dia, a medicina passou a ser
muito mais ciência, mas ainda tem alguns traços que só são aprendidos na
interação pessoal, vendo como quem já
sabe faz. De maneira crítica, claro, pois,
cada vez mais, percebemos tradições
"abandonáveis" ante os novos conhecimentos. Isso constitui um problema sério: imagina-se que, em biologia, novas
informações suplantam as antigas de tal
forma que, a cada dois ou três anos, sente-se necessidade de reciclar tudo o que
se sabe. É quase impossível pretender
isso de médicos que estão na prática clínica, especialmente neste país em que se
exige muito do profissional, não se paga
o adequado e não se permite que ele tenha tempo para estudar.
Em relação à medicina que precisa ser
praticada hoje, as escolas estão falhando
em todos os sentidos.
Não conseguem formar cientistas biológicos, porque não contam com pesquisadores que realmente ensinem
-estes senhores estão nos quadros docentes, mas ministram poucas aulas.
Também não conseguem formar médicos para trabalhar no SUS (Sistema Único de Saúde), que, lembremos, não está
claramente organizado. De fato, não saberíamos responder à questão: que tipo
de médico deve trabalhar no SUS? A reposta mais habitual, hoje, é: "Aquele
coitado que não conseguiu nenhum outro emprego", concepção que, evidentemente, está errada.
Carecemos de médicos que saibam fazer diagnósticos sem abusar de exames
complementares e consigam separar o
que é sério do que pode esperar.
Outro tipo a ser formado é o que trabalhe no Programa de Saúde da Família,
uma das proposições em saúde pública
bem-sucedidas e, provavelmente, a melhor novidade no âmbito do SUS nos últimos anos. Não é necessário que tal
doutor seja um supercientista nem que
conheça detalhes mínimos de neurologia ou cardiologia. Impõe-se que tenha
capacidade de conversar e entender todo o discurso subjacente às interações
familiares, sentindo prazer em acompanhar os casos que atende.
Quando é que se aprende medicina?
Em geral, após o término da parte básica do curso médico, o aluno cai no internato e na residência para tirar proveito da prática. Não com desinteressados
professores, mas, sim, com residentes
ou com um outro abnegado que se dá
ao trabalho de ficar lado a lado com o
discípulo, ensinando, como fazia o velho Hipócrates, discutindo caso a caso.
É um método lento, difícil, que passa
defeitos do mais velho para o mais moço, mas constitui, ainda, o melhor método para saber medicina de uma maneira integrada, arte e ciência. O problema é a falta de docentes capazes de participar de forma apropriada.
Às escolas de medicina cabe a incumbência de adotar suficientemente a informática para ensinar os alunos. De
nada adianta instruir a respeito de fatos
e fatos que serão decorados e esquecidos -além de, porventura, todos mudados em dois anos. É proveitoso para o
aluno de medicina saber procurar a informação e analisar criticamente os conhecimentos a fim de decidir quais são
válidos e quais não são.
Um outro fenômeno recente, com o
atendimento de convênios e particulares em hospitais universitários, é o fato
de que pacientes pagam pelo trabalho
de certos doutores e são cuidados por
residentes. Às vezes, eles se beneficiam
disso, já que residentes, com freqüência,
são muito mais dedicados e sempre estão por lá, diferentemente dos responsáveis diretos.
Aonde queremos chegar? O ensino
médico precisa ser repensado e, quiçá,
deveria ficar estruturado de maneira diferente, de acordo com o que o aluno
deseja, como acontece em algumas escolas norte-americanas. Assim, a partir
de algumas matérias básicas, o aluno
passaria a compor ele mesmo seu currículo, segundo o que ele ambiciona assumir quando terminar a graduação, contando com o auxilio de tutor, docente
que realmente discuta com o educando
as perspectivas profissionais.
Algumas coisas essenciais, como as
questões éticas e a parte formal de fazer
medicina (implicações legais de ter consultório, noções elementares de contabilidade, conhecimentos de como lidar
com o emaranhado legal que preside a
vida comercial brasileira), simplesmente não fazem parte do curso médico e
são entendidas a duras penas na vida
prática. O ensino médico é sacudido,
vez ou outra, por reformas que se anunciam bombásticas e que pouco mudam
no conteúdo, servindo para manter a
tradição nacional: tudo continua como
dantes no quartel de Abrantes...
Vicente Amato Neto, 78, médico infectologista,
é professor emérito da Faculdade de Medicina
da USP (Universidade de São Paulo).
Jacyr Pasternak, 65, médico infectologista, é
doutor em medicina pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
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