São Paulo, segunda-feira, 10 de abril de 2006

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Ensinar medicina, hoje


Em relação à medicina que precisa ser praticada hoje, as escolas estão falhando em todos os sentidos

VICENTE AMATO NETO e JACYR PASTERNAK

É tradição em medicina: quem está em atividade ensina quem está começando. Não é sem motivo que do juramento de Hipócrates consta um pedaço no qual o médico declara que ensinará a arte (naquele tempo, medicina tinha pouco de ciência) aos filhos dos seus professores, configurando um jeito de pagar o que recebera.
Hoje em dia, a medicina passou a ser muito mais ciência, mas ainda tem alguns traços que só são aprendidos na interação pessoal, vendo como quem já sabe faz. De maneira crítica, claro, pois, cada vez mais, percebemos tradições "abandonáveis" ante os novos conhecimentos. Isso constitui um problema sério: imagina-se que, em biologia, novas informações suplantam as antigas de tal forma que, a cada dois ou três anos, sente-se necessidade de reciclar tudo o que se sabe. É quase impossível pretender isso de médicos que estão na prática clínica, especialmente neste país em que se exige muito do profissional, não se paga o adequado e não se permite que ele tenha tempo para estudar.
Em relação à medicina que precisa ser praticada hoje, as escolas estão falhando em todos os sentidos.
Não conseguem formar cientistas biológicos, porque não contam com pesquisadores que realmente ensinem -estes senhores estão nos quadros docentes, mas ministram poucas aulas. Também não conseguem formar médicos para trabalhar no SUS (Sistema Único de Saúde), que, lembremos, não está claramente organizado. De fato, não saberíamos responder à questão: que tipo de médico deve trabalhar no SUS? A reposta mais habitual, hoje, é: "Aquele coitado que não conseguiu nenhum outro emprego", concepção que, evidentemente, está errada.
Carecemos de médicos que saibam fazer diagnósticos sem abusar de exames complementares e consigam separar o que é sério do que pode esperar.
Outro tipo a ser formado é o que trabalhe no Programa de Saúde da Família, uma das proposições em saúde pública bem-sucedidas e, provavelmente, a melhor novidade no âmbito do SUS nos últimos anos. Não é necessário que tal doutor seja um supercientista nem que conheça detalhes mínimos de neurologia ou cardiologia. Impõe-se que tenha capacidade de conversar e entender todo o discurso subjacente às interações familiares, sentindo prazer em acompanhar os casos que atende.
Quando é que se aprende medicina? Em geral, após o término da parte básica do curso médico, o aluno cai no internato e na residência para tirar proveito da prática. Não com desinteressados professores, mas, sim, com residentes ou com um outro abnegado que se dá ao trabalho de ficar lado a lado com o discípulo, ensinando, como fazia o velho Hipócrates, discutindo caso a caso.
É um método lento, difícil, que passa defeitos do mais velho para o mais moço, mas constitui, ainda, o melhor método para saber medicina de uma maneira integrada, arte e ciência. O problema é a falta de docentes capazes de participar de forma apropriada.
Às escolas de medicina cabe a incumbência de adotar suficientemente a informática para ensinar os alunos. De nada adianta instruir a respeito de fatos e fatos que serão decorados e esquecidos -além de, porventura, todos mudados em dois anos. É proveitoso para o aluno de medicina saber procurar a informação e analisar criticamente os conhecimentos a fim de decidir quais são válidos e quais não são.
Um outro fenômeno recente, com o atendimento de convênios e particulares em hospitais universitários, é o fato de que pacientes pagam pelo trabalho de certos doutores e são cuidados por residentes. Às vezes, eles se beneficiam disso, já que residentes, com freqüência, são muito mais dedicados e sempre estão por lá, diferentemente dos responsáveis diretos.
Aonde queremos chegar? O ensino médico precisa ser repensado e, quiçá, deveria ficar estruturado de maneira diferente, de acordo com o que o aluno deseja, como acontece em algumas escolas norte-americanas. Assim, a partir de algumas matérias básicas, o aluno passaria a compor ele mesmo seu currículo, segundo o que ele ambiciona assumir quando terminar a graduação, contando com o auxilio de tutor, docente que realmente discuta com o educando as perspectivas profissionais.
Algumas coisas essenciais, como as questões éticas e a parte formal de fazer medicina (implicações legais de ter consultório, noções elementares de contabilidade, conhecimentos de como lidar com o emaranhado legal que preside a vida comercial brasileira), simplesmente não fazem parte do curso médico e são entendidas a duras penas na vida prática. O ensino médico é sacudido, vez ou outra, por reformas que se anunciam bombásticas e que pouco mudam no conteúdo, servindo para manter a tradição nacional: tudo continua como dantes no quartel de Abrantes...


Vicente Amato Neto, 78, médico infectologista, é professor emérito da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).
Jacyr Pasternak, 65, médico infectologista, é doutor em medicina pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).


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