São Paulo, domingo, 10 de maio de 2009

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CARLOS HEITOR CONY

Gripes e gripados

RIO DE JANEIRO - Apesar dos muitos e desnecessários anos que carrego nas costas, não cheguei a este mundo a tempo de pegar a espanhola, com a qual a gripe suína, agora com um nome cabalístico e esterilizado, vem sendo comparada. As duas nada têm a ver, pelo menos até agora, e pelos depoimentos dos contemporâneos da peste.
Passei a infância ouvindo relatos de sobreviventes, que era a população inteira do Rio daquela época. Os mortos eram empilhados na porta da rua para que a prefeitura os removesse. O serviço municipal entrou em pane, o jeito era os parentes pegarem o falecido e um bonde que passava de manhã e de tarde: botavam o corpo lá dentro e o bonde seguia cheio de mortos até uma vala aberta pela Saúde Pública. Não precisavam pagar passagem, que era de dois tostões, tabela da Light&Power, que os jornais gostavam de chamar "Polvo Canadense".
Mário Filho, autor do clássico "O negro no futebol brasileiro", que deu nome ao estádio do Maracanã, irmão de sangue do Nelson Rodrigues e meu irmão por consenso mútuo, tinha o projeto de escrever um romance cujo título seria "O Carnaval de 1919". Segundo Mário, no ano seguinte à gripe, aqueles que sobreviveram à peste, mas sentiram o hálito da morte no pescoço, entregaram-se a depravações compensatórias. Orgias coletivas e desesperadas, nas quais valia tudo. Procuravam esquecer os meses em que a vida de todos estava por um fio, ninguém passava daquela noite: o sujeito ia atravessar a rua em plena saúde, chegava definitivamente morto na calçada oposta.
Nem um presidente da República escapou da peste. Desse susto não devemos temer. Lula já garantiu que tanto a crise econômica como a gripe são coisas dos outros.


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