São Paulo, Sábado, 10 de Julho de 1999
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Maquinista da Central

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Minha primeira vocação foi ser maquinista da Central do Brasil. Adorava trens, gostava de seus cheiros, gostava até dos dormentes salpicados de brasas extintas, caídas de suas fornalhas aquecidas pelo carvão vindo da Inglaterra.
Quis ser padre -essa foi não apenas a vocação definitiva mas realmente única. Fora disso, não tive vocação para mais nada.
A diplomacia seria a última carreira que me seduziria. Mesmo assim a admiro. Outro dia, num jantar formal, fui colocado numa mesa em que havia um diplomata brasileiro e um presidente latino-americano, cujo nome era Flores.
Quando nos apresentamos mutuamente, entendi que o Flores era o diplomata. Passei o jantar inteiro, que durou duas horas, chamando-o de Flores.
O diplomata resistiu impávido. O presidente latino-americano não entendia nada. Cada vez que eu falava ""não é bem assim, Flores, acho que...", ele olhava boquiaberto para mim e mais boquiaberto para o falso Flores. Deve ter levado em conta a sutileza dos idiomas. Nada mais complicado do que línguas parecidas.
Certa vez, em Havana, querendo me servir de uma sopa, pedi à dona da casa que me desse a sua concha. Ela arregalou os olhos. Só mais tarde me explicaram que, nas bandas hispânicas, ""concha" é sinônimo chulo de outra coisa.
O diplomata nem arregalou os olhos. Aceitou placidamente que eu o chamasse de Flores. E, com a sutileza dos bons diplomatas, evitou dirigir-se ao presidente pelo nome. Chamava-o de ""senhor presidente".
Era o que eu devia ter feito. Nas poucas vezes em que tive de falar com ele, chamei-o de ""excelência". Foi o máximo de diplomacia que consegui até hoje. Realmente, tentei ser padre, mas não deu. Devia ter sido maquinista da Central.


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