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Maquinista da Central
CARLOS HEITOR CONY
Rio de Janeiro - Minha primeira vocação foi ser maquinista da Central do
Brasil. Adorava trens, gostava de seus
cheiros, gostava até dos dormentes salpicados de brasas extintas, caídas de
suas fornalhas aquecidas pelo carvão
vindo da Inglaterra.
Quis ser padre -essa foi não apenas
a vocação definitiva mas realmente
única. Fora disso, não tive vocação para mais nada.
A diplomacia seria a última carreira
que me seduziria. Mesmo assim a admiro. Outro dia, num jantar formal,
fui colocado numa mesa em que havia
um diplomata brasileiro e um presidente latino-americano, cujo nome
era Flores.
Quando nos apresentamos mutuamente, entendi que o Flores era o diplomata. Passei o jantar inteiro, que
durou duas horas, chamando-o de
Flores.
O diplomata resistiu impávido. O
presidente latino-americano não entendia nada. Cada vez que eu falava
""não é bem assim, Flores, acho que...",
ele olhava boquiaberto para mim e
mais boquiaberto para o falso Flores.
Deve ter levado em conta a sutileza
dos idiomas. Nada mais complicado
do que línguas parecidas.
Certa vez, em Havana, querendo me
servir de uma sopa, pedi à dona da casa que me desse a sua concha. Ela arregalou os olhos. Só mais tarde me explicaram que, nas bandas hispânicas,
""concha" é sinônimo chulo de outra
coisa.
O diplomata nem arregalou os
olhos. Aceitou placidamente que eu o
chamasse de Flores. E, com a sutileza
dos bons diplomatas, evitou dirigir-se
ao presidente pelo nome. Chamava-o
de ""senhor presidente".
Era o que eu devia ter feito. Nas poucas vezes em que tive de falar com ele,
chamei-o de ""excelência". Foi o máximo de diplomacia que consegui até
hoje. Realmente, tentei ser padre, mas
não deu. Devia ter sido maquinista da
Central.
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