São Paulo, Sábado, 10 de Julho de 1999
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O processo de reforma do Estado brasileiro caminha na direção certa?

NÃO
O lado oculto da reforma

MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

A despeito de todo o empenho e de todas as declarações oficiais, a agenda reformadora continua congestionada no Brasil. Não se registram avanços substantivos. O Estado brasileiro é hoje bem diverso do que foi até os anos 80, sobretudo graças aos seguidos programas de privatização e enxugamento administrativo postos em prática pelos últimos governos nacionais.
Apesar disso, não temos no país um Estado melhor, mais bem-estruturado ou mais competente. Somos sempre convidados a ver o Estado como algo "externo" à sociedade, simples agente de controle e regulação do mercado. Em suma: falta política em nosso debate sobre o Estado, que não é tratado nem como instrumento de dominação, a expressar uma dada correlação de forças, nem como desdobramento vivo da sociedade, espaço no qual se condensam interesses e relações sociais.
A visão reducionista que cerca o debate sobre o Estado trava e inviabiliza a reforma, na medida mesma em que tende a apresentá-la como uma questão de custos e dimensões. Nessa operação, o serviço público é entendido como um acessório da política econômica, e o Estado se transforma em uma extensão negativa do mercado: um aparato que implica um ônus para a sociedade, para os indivíduos e para a livre iniciativa. Em consequência, generaliza-se a opinião de que, quanto menor for o Estado e quanto menos investido de poderes e atribuições ele estiver, melhor para a sociedade. O Estado converte-se, assim, em uma espécie de refém do mercado e do cálculo financeiro; algo, em suma, vazio de densidade e grandeza, desligado da sociedade que o gera e o determina.
Com isso, ficam fora do debate os aspectos mais substantivos, referidos ao sentido e à natureza da comunidade política estruturada no Brasil. Não pode surpreender, portanto, que os temas propriamente políticos da reforma não consigam se impor à discussão. Ficam à margem, represados, reaparecendo, de tempos em tempos, de modo simplificado e casuístico.
Foi o que ocorreu, por exemplo, em março deste ano, quando o presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou que as reformas políticas haviam se tornado prioridade do governo. Declarando repentinamente estar disposto a brigar por elas, mas, ao mesmo tempo, apresentando-as como coisa rotineira, fácil de ser resolvida, o presidente não só hostilizou o Congresso como rebaixou a qualidade da discussão, permitindo que se concluísse que, para ele, a reforma só interessaria à medida que pudesse vir a facilitar a "governabilidade", ou seja, disciplinar o Congresso (por exemplo, por meio do recurso à fidelidade partidária) e submetê-lo ao comando do Poder Executivo.
É evidente que estamos em meio a uma batalha pelo Estado. Ela tem a ver não tanto com o "custo" do Estado, mas com as idéias e os projetos a respeito do modo como desejamos viver. Não se trata, portanto, do Estado, mas da sociedade: dos interesses que nela prevalecerão, da organização institucional e da cidadania que deverão nela vigorar, do padrão de desenvolvimento, justiça social, distribuição de renda e inclusão no qual viveremos.
Por isso, nenhuma reforma digna do nome pode ser pensada com base nos recursos que os governos deixarão de gastar, mas na capacidade que ela tiver de conceber uma nova sociedade e de se vincular aos destinos da população, à defesa de seus direitos, à promoção de seu bem-estar. Isso quer dizer que a reforma do Estado é o prolongamento de uma reforma democrática e social, pois se destina a reformular as relações entre o Estado e a sociedade civil. Só pode frutificar combinada com uma iniciativa voltada para repor o sentido da política e recuperar os vínculos entre as instituições, os indivíduos e os grupos.
O tema do Estado e da sua reforma deveria estar no centro das preocupações nacionais. Não pode ser visto como mero item de um programa de governo, mas como algo revestido do mais elevado e autêntico interesse público. As oposições democráticas e de esquerda, nesse particular, têm uma importante função a cumprir: a elas cabe não só examinar e questionar a pauta oficial, mas propor uma pauta alternativa, mais generosa e mais contundente. A elas cabe também fazer com que o debate chegue às bases da sociedade e empolgue a população. É insensato achar que o tema da reforma possa ser monopolizado pelo governo, pelo discurso oficial, por técnicos e cientistas ou por uma forma qualquer de "pensamento único". Mais que qualquer outro, ele está no coração mesmo da oposição democrática à atual realidade do país e do mundo.


Marco Aurélio Nogueira, 49, é professor livre-docente de teoria política na Unesp (Universidade Estadual Paulista), pesquisador da Fundap (Fundação do Desenvolvimento Administrativo) e autor de "As Possibilidades da Política. Idéias para a Reforma Democrática do Estado" (Paz e Terra, 1998).



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