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O processo de reforma do Estado brasileiro caminha na direção certa?
NÃO
O lado oculto da reforma
MARCO AURÉLIO NOGUEIRA
A despeito de todo o empenho e de
todas as declarações oficiais, a agenda
reformadora continua congestionada
no Brasil. Não se registram avanços
substantivos. O Estado brasileiro é hoje bem diverso do que foi até os anos
80, sobretudo graças aos seguidos programas de privatização e enxugamento administrativo postos em prática
pelos últimos governos nacionais.
Apesar disso, não temos no país um
Estado melhor, mais bem-estruturado
ou mais competente. Somos sempre
convidados a ver o Estado como algo
"externo" à sociedade, simples agente
de controle e regulação do mercado.
Em suma: falta política em nosso debate sobre o Estado, que não é tratado
nem como instrumento de dominação, a expressar uma dada correlação
de forças, nem como desdobramento
vivo da sociedade, espaço no qual se
condensam interesses e relações sociais.
A visão reducionista que cerca o debate sobre o Estado trava e inviabiliza a
reforma, na medida mesma em que
tende a apresentá-la como uma questão de custos e dimensões. Nessa operação, o serviço público é entendido
como um acessório da política econômica, e o Estado se transforma em
uma extensão negativa do mercado:
um aparato que implica um ônus para
a sociedade, para os indivíduos e para
a livre iniciativa. Em consequência, generaliza-se a opinião de que, quanto
menor for o Estado e quanto menos
investido de poderes e atribuições ele
estiver, melhor para a sociedade. O Estado converte-se, assim, em uma espécie de refém do mercado e do cálculo
financeiro; algo, em suma, vazio de
densidade e grandeza, desligado da sociedade que o gera e o determina.
Com isso, ficam fora do debate os aspectos mais substantivos, referidos ao
sentido e à natureza da comunidade
política estruturada no Brasil. Não pode surpreender, portanto, que os temas propriamente políticos da reforma não consigam se impor à discussão. Ficam à margem, represados, reaparecendo, de tempos em tempos, de
modo simplificado e casuístico.
Foi o que ocorreu, por exemplo, em
março deste ano, quando o presidente
Fernando Henrique Cardoso afirmou
que as reformas políticas haviam se
tornado prioridade do governo. Declarando repentinamente estar disposto a
brigar por elas, mas, ao mesmo tempo,
apresentando-as como coisa rotineira,
fácil de ser resolvida, o presidente não
só hostilizou o Congresso como rebaixou a qualidade da discussão, permitindo que se concluísse que, para ele, a
reforma só interessaria à medida que
pudesse vir a facilitar a "governabilidade", ou seja, disciplinar o Congresso
(por exemplo, por meio do recurso à
fidelidade partidária) e submetê-lo ao
comando do Poder Executivo.
É evidente que estamos em meio a
uma batalha pelo Estado. Ela tem a ver
não tanto com o "custo" do Estado,
mas com as idéias e os projetos a respeito do modo como desejamos viver.
Não se trata, portanto, do Estado, mas
da sociedade: dos interesses que nela
prevalecerão, da organização institucional e da cidadania que deverão nela
vigorar, do padrão de desenvolvimento, justiça social, distribuição de renda
e inclusão no qual viveremos.
Por isso, nenhuma reforma digna do
nome pode ser pensada com base nos
recursos que os governos deixarão de
gastar, mas na capacidade que ela tiver
de conceber uma nova sociedade e de
se vincular aos destinos da população,
à defesa de seus direitos, à promoção
de seu bem-estar. Isso quer dizer que a
reforma do Estado é o prolongamento
de uma reforma democrática e social,
pois se destina a reformular as relações
entre o Estado e a sociedade civil. Só
pode frutificar combinada com uma
iniciativa voltada para repor o sentido
da política e recuperar os vínculos entre as instituições, os indivíduos e os
grupos.
O tema do Estado e da sua reforma
deveria estar no centro das preocupações nacionais. Não pode ser visto como mero item de um programa de governo, mas como algo revestido do
mais elevado e autêntico interesse público. As oposições democráticas e de
esquerda, nesse particular, têm uma
importante função a cumprir: a elas
cabe não só examinar e questionar a
pauta oficial, mas propor uma pauta
alternativa, mais generosa e mais contundente. A elas cabe também fazer
com que o debate chegue às bases da
sociedade e empolgue a população. É
insensato achar que o tema da reforma
possa ser monopolizado pelo governo,
pelo discurso oficial, por técnicos e
cientistas ou por uma forma qualquer
de "pensamento único". Mais que
qualquer outro, ele está no coração
mesmo da oposição democrática à
atual realidade do país e do mundo.
Marco Aurélio Nogueira, 49, é professor livre-docente de teoria política na Unesp (Universidade Estadual Paulista), pesquisador da Fundap (Fundação do
Desenvolvimento Administrativo) e autor de "As Possibilidades da Política. Idéias para a Reforma Democrática do Estado" (Paz e Terra, 1998).
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