São Paulo, terça-feira, 10 de agosto de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ELIANE CANTANHÊDE

Escreveu e não leu, o pau comeu

BRASÍLIA - O corporativismo não é bom para ninguém -nem para o país. Resumido, é assim: entre privilégios de categorias e legítimos interesses da sociedade, dane-se a sociedade.
Nós, jornalistas, somos vítimas e réus do corporativismo. Vítimas quando levamos bordoadas por criticar poderosos e privilégios arraigados e sem sentido de uma ou outra categoria. E réus porque corremos soltos, às vezes acima do bem e do mal.
Podemos ser injustos, derrubar ministros, governadores, parlamentares, policiais, médicos. Já fomos até decisivos para derrubar um presidente da República. Mas não aceitamos nem ser criticados. Foi por isso que admiti, já no primeiro momento do projeto, que há muito o que discutir, sim, dentro e fora da imprensa, sobre um conselho de jornalismo.
Dito isso, o que estranha é o projeto do Conselho Federal de Jornalismo ser encaminhado pelo presidente. E com o objetivo abrangente, no mínimo, de "orientar, disciplinar e fiscalizar" o exercício da profissão, prevendo penas até de suspensão e de cassação do registro profissional. Afinal, por que Lula? Por que agora, com o governo debaixo de pau? E o que o Estado tem a ver com isso?
Jornalista não é como médico, dentista, policial, enfermeiro ou engenheiro -especialmente neste último caso, se errar, a casa literalmente cai. Trabalha (trabalhamos) com uma matéria-prima que não é cimento, pedra, revólver ou bisturi. Trabalha (trabalhamos) com fatos e, como fatos são sujeitos a diferentes versões e interpretações, precisamos de independência (de governos, sobretudo) e de capacidade crítica (inclusive contra poderosos de plantão).
Na China e em Cuba, entre tantos outros, o Estado pode tudo, até decretar a morte de dissidentes, sem direito a defesa. Mas isto aqui é Brasil. Não dá para bater na tecla do "denuncismo" -que até existe- para justificar tentativas de domesticar o Ministério Público, a produção cultural e o jornalismo. A sociedade brasileira já aprendeu a lição: ruim com eles, muitíssimo pior sem eles.


Texto Anterior: São Paulo - Clóvis Rossi: O exílio está de volta
Próximo Texto: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: A unidade ortográfica
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.