|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ROBERTO MANGABEIRA UNGER
Renegociação e conversibilidade
O Estado (e o país com ele) continua vergado sob o peso de dívida
impagável. (Para simplificar, tratarei
as dívidas interna e externa como inseparáveis, dados os vínculos entre as
duas). Apesar do enorme sacrifício fiscal, o governo paga menos da metade
dos juros; o resto se soma ao principal.
Essa situação insustentável estimula
os credores do Estado a exigir juros altos, que por sua vez pioram a dinâmica da dívida e condenam o produtor a
pagar pelo crédito mais do que ganha
no empreendimento.
Apresentam-se (na surdina) três soluções: inflação, renegociação e conversibilidade da moeda -o direito livre que teria o capital de trocar moeda
nacional por estrangeira e de ir e vir
quando quiser. Todas as três soluções
pressupõem a perpetuação de esforço
fiscal exigente e portanto a rejeição de
populismo irresponsável. Minha tese
é simples, embora possa parecer chocante por combinar, na mesma sequência, soluções consideradas antagônicas. Convém renegociar e, logo
em seguida, instituir a conversibilidade.
Por desvalorizar a dívida, a inflação
atenua. Mas não resolve. Não toca a
dívida externa. Para aliviar a interna,
teria de ser alta. O país se recusa a voltar a inflação alta e crônica.
A renegociação é imprescindível como ponto de partida. Evento corriqueiro no mundo moderno, não é calote nem apocalipse. Armado de base
fiscal sólida e de medidas para proteger as reservas (controles severos porém temporários sobre a saída do dinheiro), o Estado torce o braço de credores que há muito tempo recebem
juros que embutem o risco de renegociação ou de inadimplência. Com isso,
restabelece meios para atuar e investir
e resgata do suplício os interesses do
trabalho e da produção.
A renegociação, porém, deve ser seguida por aquilo que parece ser seu
oposto -a livre conversibilidade da
moeda. Ao contrário do que imaginam ideólogos de direita, a conversibilidade não é sempre benéfica: não
há relação universal entre crescimento
e conversibilidade. Ao contrário do
que supõem ideólogos de esquerda, a
conversibilidade não é sempre prejudicial: tudo depende do papel que desempenhe na circunstância. Na seqüela de renegociação, teria quatro vantagens. A primeira é que contrabalançaria o trauma (real ainda que exagerado) que a renegociação terá imposto à
confiança. A segunda é que, quando
combinada com a indispensável livre
flutuação da moeda, diminuiria o perigo das crises recorrentes no balanço
de pagamentos que interrompem
nosso crescimento. Tal perigo passaria a ter foco mais estreito: o descasamento dos tempos de nossos ganhos e
gastos em moeda estrangeira. A terceira é que fortaleceria a disposição
para emprestar e tomar emprestado
em moeda nacional, fomentando
mercado de capitais que canalizasse
poupança de longo prazo para investimento de longo prazo. A quarta é que,
na esteira das outras vantagens, ajudaria as políticas monetária e fiscal a reconquistar sua vocação anticíclica.
Para pensar desse jeito, é preciso ver
o técnico à luz do geral e o geral sob o
prisma do técnico. E enfrentar fetiches
ideológicos que, sem base nos fatos ou
na teoria, opõem soluções que se podem e se devem complementar. É desesperador: temo, mais uma vez, haver feito proposta que só meus adversários entenderão.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: A unidade ortográfica Próximo Texto: Frases Índice
|