São Paulo, terça-feira, 10 de agosto de 2004

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Renegociação e conversibilidade

O Estado (e o país com ele) continua vergado sob o peso de dívida impagável. (Para simplificar, tratarei as dívidas interna e externa como inseparáveis, dados os vínculos entre as duas). Apesar do enorme sacrifício fiscal, o governo paga menos da metade dos juros; o resto se soma ao principal. Essa situação insustentável estimula os credores do Estado a exigir juros altos, que por sua vez pioram a dinâmica da dívida e condenam o produtor a pagar pelo crédito mais do que ganha no empreendimento.
Apresentam-se (na surdina) três soluções: inflação, renegociação e conversibilidade da moeda -o direito livre que teria o capital de trocar moeda nacional por estrangeira e de ir e vir quando quiser. Todas as três soluções pressupõem a perpetuação de esforço fiscal exigente e portanto a rejeição de populismo irresponsável. Minha tese é simples, embora possa parecer chocante por combinar, na mesma sequência, soluções consideradas antagônicas. Convém renegociar e, logo em seguida, instituir a conversibilidade.
Por desvalorizar a dívida, a inflação atenua. Mas não resolve. Não toca a dívida externa. Para aliviar a interna, teria de ser alta. O país se recusa a voltar a inflação alta e crônica.
A renegociação é imprescindível como ponto de partida. Evento corriqueiro no mundo moderno, não é calote nem apocalipse. Armado de base fiscal sólida e de medidas para proteger as reservas (controles severos porém temporários sobre a saída do dinheiro), o Estado torce o braço de credores que há muito tempo recebem juros que embutem o risco de renegociação ou de inadimplência. Com isso, restabelece meios para atuar e investir e resgata do suplício os interesses do trabalho e da produção.
A renegociação, porém, deve ser seguida por aquilo que parece ser seu oposto -a livre conversibilidade da moeda. Ao contrário do que imaginam ideólogos de direita, a conversibilidade não é sempre benéfica: não há relação universal entre crescimento e conversibilidade. Ao contrário do que supõem ideólogos de esquerda, a conversibilidade não é sempre prejudicial: tudo depende do papel que desempenhe na circunstância. Na seqüela de renegociação, teria quatro vantagens. A primeira é que contrabalançaria o trauma (real ainda que exagerado) que a renegociação terá imposto à confiança. A segunda é que, quando combinada com a indispensável livre flutuação da moeda, diminuiria o perigo das crises recorrentes no balanço de pagamentos que interrompem nosso crescimento. Tal perigo passaria a ter foco mais estreito: o descasamento dos tempos de nossos ganhos e gastos em moeda estrangeira. A terceira é que fortaleceria a disposição para emprestar e tomar emprestado em moeda nacional, fomentando mercado de capitais que canalizasse poupança de longo prazo para investimento de longo prazo. A quarta é que, na esteira das outras vantagens, ajudaria as políticas monetária e fiscal a reconquistar sua vocação anticíclica.
Para pensar desse jeito, é preciso ver o técnico à luz do geral e o geral sob o prisma do técnico. E enfrentar fetiches ideológicos que, sem base nos fatos ou na teoria, opõem soluções que se podem e se devem complementar. É desesperador: temo, mais uma vez, haver feito proposta que só meus adversários entenderão.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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