São Paulo, quinta-feira, 10 de outubro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A dependência que vem das idéias

DOMÉRIO NASSAR DE OLIVEIRA

É grande o risco de permanecermos prisioneiros de um mito que parece justificar os descaminhos do Brasil. Sem formulações alternativas e constrangidos pela mídia que ainda reverbera os ecos do "pensamento único", os programas econômicos apresentados por alguns candidatos ainda se curvam à idéia de que os brasileiros precisam poupar para que o país possa crescer. Ironicamente, atrelam suas propostas a afirmações teóricas falaciosas, que precisam ser desmistificadas para que o país recupere sua auto-estima e possa destravar a prisão conceitual a que foi confinado.
O Brasil não precisa de poupança para financiar crescimento. Precisa, sim, de maior emissão e circulação de moeda que se vincule à geração de produto. Não há por que se alarmar com inflação se a gestão dessa moeda, dosando liquidez ao aumento da produção, for criativa e combinar estímulos ou desestímulos à sua expansão, através da maior ou menor concessão de empréstimos pelo sistema bancário aos diferentes setores econômicos que se queira sensibilizar.
A moeda em questão não é a moeda em papel ou metálica de emissão oficial, que sacamos dos bancos e carregamos no bolso. Essa moeda guarda relação estável com o PIB (2,5%), sendo pouco relevante para influenciar nossa macroeconomia. A moeda que interessa é aquela que movimentamos por meio dos cheques. Ou seja, a moeda escritural correspondente a 46% do PIB e composta por valores que são, na realidade, emitidos como arquivos eletrônicos pelos bancos, para só depois circularem na rede de seus computadores, em nossas contas de depósitos à vista ou a prazo.
Até sua extinção, essa moeda eletrônica muda de endereço entre contas de diferentes titulares, mas permanece sempre dentro do computador de algum banco dessa rede fechada em torno do computador do Banco Central. É essa massa monetária que precisa ser gerida de forma bem mais consciente, usando-se expedientes que regulem o acréscimo de seu volume e a frequência de sua circulação à esfera produtiva da economia, para que possa acelerar o crescimento.
Se abrirmos, então, uma janela ao pensamento, despoluindo idéias entulhadas pelas "teorias" que nos acometeram nos últimos anos, poderemos fazer uma leitura mais limpa da realidade da operação bancária atual e constatar, de forma tão simples quanto definitiva, que o sistema bancário não faz intermediação de recursos. É, antes de tudo, um sistema fechado de emissão de moeda eletrônica e de compensação recíproca de seus saques. Constatado esse fato, transparente a quem aceite depor a viseira das abordagens convencionais, vem a pergunta: Por que haveria necessidade de poupança para financiar investimentos, se a moeda eletrônica, passível de ser emitida ou de circular a qualquer tempo, permanece sempre interna à rede bancária?
Individualmente, os bancos precisam recapturar parte da moeda que lançam em circulação eletrônica. Mas, nessa recaptura, um depósito a prazo vale tanto quanto a conquista da carteira de cobrança ou da folha de pagamentos de uma empresa qualquer. Vale pelo direito de saque momentâneo que confere ao banco que o captura, contra os demais bancos do sistema de compensação. Como estes bancos estão em constante movimento de sucessivas compensações diárias e de cancelamentos de saques recíprocos, o que interessa a cada um é nivelar os saques que lhes são dirigidos contra os saques que dirigem aos demais. É basicamente disso que se ocupam suas tesourarias quando definem suas metas de captação diária.
E não poderia mesmo ser de outra forma. Se o sistema bancário fosse um mero intermediário de recursos, tomados de um lado para serem repassados a outro, como querem nos fazer crer os que pregam a necessidade de poupança para prover investimentos, deparariamo-nos com o impasse lógico da depressão do faturamento, do lucro e dos salários das empresas cujos consumidores drenassem poder aquisitivo para compor a poupança proclamada.


O Brasil vem sendo engambelado e algemado a uma ilusória dependência de recursos preexistentes


Ou seja, a poupança dos consumidores tenderia a ser anulada pela "despoupança" decorrente da baixa de renda das empresas e de seus funcionários. E aí, como poderia haver crescimento, se ficariam comprometidos os investimentos pagos pelo faturamento das empresas, condicionado pelo consumo dos bens que produzem? Consumo e investimento não se excluem. Afinal, não é óbvio que empresas precisam vender mais para lucrarem e investirem mais?
Poupança, nas diferentes formas financeiras e prazos que pode assumir, depende do estoque flutuante da moeda eletrônica. Pode ser meio para redirecionar a aplicação dessa moeda. Mas, se a política econômica não favorece a expansão daquele estoque emitido pelo sistema bancário, conclamar um país a poupar, além de irrelevante, faz lembrar a imagem circular do cachorro tentando morder o próprio rabo.
A síntese dessa história sobre a necessidade de poupança, tolice angular das idéias liberais, é uma só. O Brasil vem sendo engambelado e algemado a uma ilusória dependência de recursos preexistentes por "teorias" de base falsa, recheadas de sofisticações inúteis, que só legitimam neutralidade e favorecimento ao sistema financeiro. Se avaliada com maior criatividade e independência, poderia ser relegada ao plano das histórias da carochinha. Infelizmente não há indícios de que isso esteja acontecendo.


Domério Nassar de Oliveira, 46, economista, é diretor financeiro Companhia de Processamento de Dados do Município de São Paulo.



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